“Se alguém quer me seguir, renuncie a si mesmo, tome cada dia sua cruz e me siga”
Lucas 9,18-24
Aqui temos a versão lucana da profissão de fé de Pedro, que Marcos põe no caminho de Cesareia de Filipe (Marcos 8,27-35) e coloca como pivô de todo o seu Evangelho. Esse trecho levanta as duas perguntas fundamentais de todos os evangelhos: “Quem é Jesus?”, “O que é ser discípulo dele?”. São duas perguntas interligadas, pois a segunda resposta depende muito da primeira. A minha visão de Jesus determina a maneira de meu seguimento dele.
O Evangelho de Lucas situa o texto em um contexto diferente dos outros dois evangelhos sinóticos: diz que Jesus “estava rezando em um lugar retirado, e os discípulos estavam com ele”; enquanto, em Marcos e Mateus, o evento se dá na estrada de Cesareia de Filipe. Uma atitude típica de Jesus em Lucas. Muitas vezes, no Terceiro Evangelho, especialmente antes de momentos importantes em sua vida, Jesus se acha em oração. Pois Ele faz nada por vontade própria, mas escutando a vontade do Pai.
O diálogo começa com uma pergunta um tanto inócua: “Quem dizem as multidões que eu sou?”. É inócua, pois não compromete. O “diz que” não compromete ninguém, pois expressa a opinião dos outros. Por isso, chovem respostas da parte dos discípulos: “João Batista, Elias, um dos antigos profetas que ressuscitou!”. Mas Jesus não quer parar aqui (a pergunta foi só uma introdução). Depois vem a “facada”: “E vocês, quem dizem que eu sou?”.
Agora não chovem respostas, pois quem responde vai se comprometer, não será a opinião dos outros, mas a opinião pessoal. Essa opinião traz consequências práticas para a vida. Finalmente, Pedro se arrisca: “O Messias de Deus” (os termos “Messias”, em hebraico, e “Cristo”, em grego, têm o mesmo sentido: o Ungido de Deus).
Mas a reação de Jesus é, no mínimo, estranha: “Ele proibiu severamente que eles contassem isso a alguém”. Que coisa esquisita! Jesus proíbe que se fale a verdade sobre ele! Como ele espera angariar discípulos desse jeito? O assunto merece mais atenção.
Realmente, Pedro acertou em termos de teologia, de “ortodoxia”, conforme diríamos hoje. Ele usou o termo certo para descrever Jesus. Mas Jesus quer esclarecer o que significa ser “O Messias de Deus”. Pois cada um pode entender esse termo conforme sua cabeça, seus desejos. Jesus quer deixar bem claro que ser “messias” para ele é ser o “Servo Sofredor” de Javé. É vivenciar o projeto do Pai, que necessariamente vai levá-lo a um choque com as autoridades políticas, religiosas, e econômicas, enfim, com a classe dominante de seu tempo: “O Filho do Homem deve sofrer muito, ser rejeitado pelos anciãos, pelos chefes dos sacerdotes e doutores da Lei, deve ser morto, e ressuscitar no terceiro dia” (versículo 22).
Essa visão que Jesus tinha do Messias, não era a comum. Em geral, o pessoal esperava um messias triunfante, glorioso e guerreiro. O relato em Marcos (mas não a versão em Lucas) mostra-nos que Pedro partilhava essa visão errada, ao ponto de tentar corrigir Jesus e de ganhar do Mestre uma correção dura: “Fique atrás de mim, Satanás! Você não pensa as coisas de Deus, mas as coisas dos homens” (Marcos 8,33).
Não basta ter os termos e títulos certos, mas o conteúdo certo. Normalmente todos nós temos os títulos certos para descrever Jesus e sua missão. Nós os aprendemos, desde a infância, desde a catequese para a primeiro comunhão. Mas o que significam esses títulos para nós, em nossa vivência diária? Professamos que Jesus é o Cristo, o Salvador, o Redentor, o Filho de Deus, mas em que minha vida é diferente porque tenho essa crença? Ele realmente é meu Senhor, meu Salvador, da maneira que procuro reproduzir e atualizar suas soluções e atitudes em minha vida, não somente no que crio, mas nas minhas atitudes na vida pública, profissional, familiar e social?
A Bíblia nos conta que Deus criou o homem e a mulher na sua imagem e semelhança, mas, na verdade, nós criamos Deus em nossa imagem e semelhança, para que Ele não nos incomode. Nossa tendência é seguir um messias triunfante e não o Servo Sofredor. Mas, para Jesus, não há meio-termo. O discípulo tem de andar nas pegadas do seu mestre: “Se alguém quer me seguir, renuncie a si mesmo, tome cada dia a sua cruz e me siga” (Lucas 9,23).
O seguimento de Jesus leva à cruz, pois a vivência das atitudes e opções dele vai nos colocar em conflito com os poderes contrários ao Evangelho. Carregar a cruz não é aguentar qualquer sofrimento. Assim, a religião seria masoquismo. Carregar a cruz é viver as consequências de uma vida coerente com o projeto do Pai, manifestado em Jesus. Segui-lo não é tanto fazer o que Jesus fazia, mas o que ele faria se estivesse aqui hoje. Como Ele foi morto, não pelo povo, mas por grupos de interesse bem claros, “os anciãos, os chefes dos sacerdotes e os doutores da Lei” (a elite dominante em termos econômicos, religiosos e ideológicos), seus seguidores entrarão em conflito com os grupos que hoje representam os mesmos interesses. Por isso sempre haverá a tentação de criarmos um Jesus light, sem grandes exigências, limitado a uma religião intimista e individualista, sem consequências políticas, econômicas ou ideológicas. Seria cair na tentação de Pedro, conforme o relato de Marcos.
O texto faz ressoar, para cada um de nós, as duas perguntas de Jesus. É fácil responder ao que os homens dizem dele, o que dizem o Papa, o bispo, o catequista, os teólogos, a tevê. Mas essa pergunta não é tão importante. É a segunda que cada um tem de responder: “Quem é Jesus para mim?”. E a resposta vai se dar não tanto com os lábios, mas com as mãos e os pés. Respondemos quem é Jesus para nós por nossa maneira de viver, por nossas opções concretas, por nossa maneira de ler os acontecimentos da vida e da história. Tenhamos cuidado com qualquer Jesus que não seja exigente, que não traz consequências sociais, que não nos engaja na luta por uma sociedade mais justa. Pois o Jesus real, o Jesus de Nazaré, o Jesus do Evangelho não foi assim, e deixou bem claro: “Se alguém quer me seguir, renuncie a si mesmo, tome cada dia sua cruz e me siga. Pois quem quiser salvar sua vida vai perdê-la; mas quem perde sua vida por causa de mim, esse a salvará”(Lucas 9,24).
Padre Tomaz Hughes, SVD, biblista e assessor da CRB e do Cebi. Dedicou-se a cursos e retiros bíblicos em todo o Brasil. Publicou diversos artigos e o livro “Paulo de Tarso: discípulo-missionário de Jesus”. Faleceu em 15 de maio de 2017. Suas reflexões bíblicas são muito atuais.