“Eu te louvo, ó Pai, … porque escondeste estas coisas aos sábios e entendidos e as revelaste aos pequeninos” Mt 11,25-30
Os três primeiros versículos desse texto não têm uma vinculação muito estreita com o contexto em que Mateus os coloca (Lucas situa o ditado num outro contexto), e por isso “estas coisas” não se refere ao que veio antes no capítulo (a condenação de Corozaim e Betsaida), mas aos “mistérios do Reino”, que são revelados aos pequenos e humildes (nesse contexto, os discípulos), e escondidos aos que se acham autossuficientes na sua sabedoria e estudo: os fariseus e doutores da Lei (Mt 13,11). Essa oração de louvor de Jesus brota de sua própria experiência na missão. Enquanto sua pessoa, ensinamento e projeto de vida são rejeitados pela elite política, econômica e religiosa da época, os pobres e massacrados pelo sistema o acolhem. A autossuficiência da elite impede que ela possa reconhecer a verdade de Jesus. Os pobres, com a sua espiritualidade do Servo de Javé, conseguem, em grande parte, acolhê-lo, mesmo sem compreender inteiramente a profundeza de sua identidade.
O texto tem ecos da literatura sapiencial e apocalíptica. Dos Sapienciais, podemos ver reflexos de Provérbios (8), onde a Sabedoria é personificada; Eclesiástico (51,1-12,13-30); e Sabedoria (6-8). Mas também nos faz lembrar textos apocalípticos, como Daniel, em que os sábios são incapazes de decifrar o sentido do sonho de Nabucodonosor (Dn 2,3-13), enquanto o humilde Daniel, confiando na revelação divina, louva a Deus por lhe ter dado a sabedoria (Dn 2,23) e revela que se trata do Reino fundado pelo próprio Deus (Dn 2,44). No tempo de Jesus, os sábios também não conseguem decifrar os mistérios do Reino de Deus, um dom que é dado aos humildes. Em Mateus, os pequenos são os discípulos (Mt 10,42) a quem são revelados o mistério do Reino dos Céus (Mt 13,11).
Os versículos 26 a 28 são importantes, pois afirmam o relacionamento único entre Jesus e o seu “Abbá”, Pai. Aqui, a comunidade mateana expressa sua fé em Jesus como Filho Absoluto do Pai Absoluto. É uma das três passagens, em Mateus, nas quais Jesus expressa, de uma maneira indireta, ter uma relação única com Deus, seu Pai. As outras são Mt 21,37 e 24,36.
A imagem do “jugo” era bastante conhecida já no Antigo Testamento (Jr 2,20; Jr 5,5; Os 10,11). No judaísmo do tempo de Jesus, era usada como imagem da Lei de Deus, escrita e oral (Eclo 6,24-30; 51,26s). O termo não tinha necessariamente uma conotação de peso ou opressão quando usado assim. O nosso texto usa a imagem corrente para contrastar a interpretação farisaica da Lei, que oprimia o povo com exigências casuísticas e conceitos que excluíam muitos, com a interpretação de Jesus, que não rejeita a Lei, mas lhe devolve o seu sentido original: uma garantia de manter vivo na comunidade o projeto libertador de Javé. O problema não estava na Lei, mas em sua interpretação. Para os doutores, as práticas externas eram tão exigentes que ofuscavam o rosto misericordioso de Deus, tornando a vivência religiosa um pesadelo para muitos. A interpretação de Jesus não é “light”; é exigente, pois exige uma vivência de fraternidade, uma luta pela solidariedade e libertação e a rejeição de todo egoísmo e individualismo. No fundo, é mais exigente do que a dos fariseus, pois não se esgota em práticas externas, mas em um processo infinito de doação de si. Mas Ele garante que esse projeto de vida, por tão exigente que seja, trará a alegria do Reino de Deus.
Esses últimos versículos nos levam a rever nossa pregação, nossa interpretação da Lei de Deus, nossa prática pastoral. Pois, ao longo da história, muitas vezes, a pregação nas Igrejas e na catequese tem sido uma série de legalismos moralizantes, reduzindo o cristianismo a uma prática externa de normas. Não poucas vezes, colocando fardos pesados sobre os menos fortes, sem que fosse oferecida a eles qualquer ajuda para carregá-los. Frequentemente, o seguimento de Jesus se reduzia ao cumprimento de leis, ou à vivência de uma moral ou ética, sem a revelação do Deus misericordioso e compassivo, o Deus de vida. Jesus nos mostra que, embora a religião exija leis e moral, fundamentalmente é uma mística, uma experiência do amor de Deus que nos convida a assumir o seu jugo como resposta, um jugo que não mata, mas que liberta, que não esconde o rosto de Deus, mas que traz a alegria do Reino.
Padre Tomaz Hughes, SVD, biblista e assessor da CRB e do Cebi. Dedicou-se a cursos e retiros bíblicos em todo o Brasil. Publicou diversos artigos e o livro “Paulo de Tarso: discípulo-missionário de Jesus”. Faleceu em 15 de maio de 2017. Suas reflexões bíblicas são muito atuais.