“Dava-lhes poder sobre os espíritos maus”
Marcos 6,7-13
Esses versículos dão início ao terceiro e último bloco da primeira parte do Evangelho de Marcos (6,6b-8,21) à qual podemos intitular “a cegueira dos discípulos”. É a continuidade dos primeiros dois blocos que tratavam da cegueira das autoridades e dos parentes de Jesus. Nosso texto trata da missão dos discípulos. Vale a pena examinar mais de perto as frases que Marcos usa.
O primeiro elemento é que a missão de Jesus, a de construir o Reino de Deus, continua na missão dos discípulos. A base da missão é o compromisso com Jesus e seu projeto. Em nossos termos hoje, cumpre lembrar que a origem da missão está em nosso batismo. Todos somos discípulos-missionários. Se somos clero, religiosos ou leigos, é secundário. A missão comum vem do batismo comum de todos nós. A maneira de vivenciarmos a missão pode ser diferente e variar, mas a missão é fundamentalmente igual.
Ele os enviou dois a dois. Uma maneira bonita de mostrar que a missão cristã é comunitária. Não existe um cristianismo individualista. Nossa fé tem consequências profundas comunitárias. Um alerta para que não caiamos na tentação de criarmos uma religião individualista e intimista, tão comum em nosso mundo de competitividade e Pós-Modernidade.
Jesus lhes dava poder sobre os espíritos imundos. Claro, aqui se expressa uma realidade importante nos termos da cosmovisão da época. “Espíritos imundos” significam tudo o que pudesse se opor ao Reino. Tudo aquilo cujos valores fossem diferentes do Reino. Infelizmente, ainda hoje, muitos interpretam essas palavras ao pé da letra e criam uma religião que sataniza e demoniza quase tudo, uma religião de exorcismos e diabos (mas sempre no nível intimista e individual). Devemos nos perguntar: quais os espíritos imundos em nós, em nossas comunidades, em nossa sociedade, que precisam ser expulsos? Não é difícil achá-los: tudo o que se opõe à vida, à dignidade humana, à justiça e à solidariedade.
Onde se vive o Evangelho, não há lugar para o espírito de individualismo, de competitividade, de exclusão, que é característica de nossa sociedade neoliberal, nossa sociedade de morte. O cristão não pode compactuar com tal sociedade e com suas estruturas. Nossas celebrações não são para nos refugiarmos nelas, mas para nos fortalecermos no esforço da criação de um mundo novo, diferente, pela utopia de Jesus. Por isso, em primeiro lugar, os discípulos tinham de se libertar do espírito de acúmulo: não levar coisas, como sinal da chegada do Reino. Em nosso caso, teríamos de examinar se, mesmo sem notar, não estamos vivendo o espírito de consumismo e materialismo, e acumulação e supérfluo, que marca a ideologia na sociedade hoje.
Jesus os adverte que nem todos iriam acolher sua mensagem, pois a mensagem de Jesus necessariamente entra em conflito com o espírito do egoísmo, enraizado na sociedade. Vale para nossos tempos: uma Igreja comprometida com os valores do Evangelho será uma Igreja rejeitada pelos poderes deste mundo.
Quando somos bem-aceitos por todos, é porque não questionamos, porque perdemos nossa voz profética. A Igreja verdadeira suscita mártires (literalmente, testemunhas) e não acomodados. Que alegria celebrar a beatificação de Dom Oscar Romero e testemunhar o início dos processos de beatificação de Dom Helder Câmara e Dom Luciano Mendes de Almeida, arautos e testemunhas da vida que Deus almeja!
Nosso texto nos convida a um exame de consciência sobre a “missionariedade” de nossa vida. Minha vida, a de minha comunidade se resumem na vivência interna das estruturas da Igreja ou nos levam a ser testemunha no meio da sociedade, profetizando e demonstrando a chegada do Reino, não tanto pelas palavras, mas pelos valores que vivencio? Uma Igreja que não seja missionária (que não significa ser prosélita) é uma Igreja morta. Lembremo-nos de que, pelo batismo, somos todos discípulos-missionários, missionárias, continuadores da missão de Jesus.
Padre Tomaz Hughes, SVD, biblista e assessor da CRB e do Cebi. Dedicou-se a cursos e retiros bíblicos em todo o Brasil. Publicou diversos artigos e o livro “Paulo de Tarso: discípulo-missionário de Jesus”. Faleceu em 15 de maio de 2017. Suas reflexões bíblicas são muito atuais.