“Pegou os pães, agradeceu a Deus e os distribuiu”
João 6,1-15
A liturgia de hoje interrompe as leituras do Evangelho de Marcos e insere um trecho tirado do capítulo sexto de João, o que comumente chamamos o milagre da “multiplicação dos pães”. Logo, vale lembrar que esse é o único milagre contado pelos quatro evangelhos, tanto pela tradição sinótica como da comunidade do Discípulo Amado. Isso mostra claramente que, para as primeiras comunidades cristãs de diversas tradições, a história hoje relatada tinha um grande valor e uma mensagem muito importante.
Os quatro relatos seguem basicamente o mesmo fio da meada, com as divergências próprias a cada tradição e teologia. O enfoque mais “sacramental” ou “eucarístico” é de João, mostrando, mais uma vez, uma das características da comunidade do Discípulo Amado: a de ter uma teologia eucarística mais desenvolvida.
Embora seja um dos relatos mais conhecidos dos evangelhos, vale a pena sublinhar um elemento que talvez possa parecer estranho: embora nós sempre nos refiramos ao milagre da “multiplicação dos pães”, em nenhum dos quatro relatos, usa-se o verbo “multiplicar”. Usam-se outros termos nos quatro evangelhos: “pegar”, “benzer”, “distribuir”, “partilhar”. Não é o caso de discutir aqui o que foi que Jesus fez! Nem teríamos condições de descobrir. O enfoque é outro. Se os evangelistas tivessem colocado a ênfase sobre o “multiplicar”, ou seja, sobre o estritamente milagroso, então a história não teria grandes consequências para nós hoje, pois nós não temos o poder de fazer milagres. Mas, colocando a ênfase sobre o “partilhar” e o “distribuir”, os evangelistas nos desafiam hoje. Pois as ações de partilhar e distribuir estão a nosso alcance.
No Brasil, com tanta gente assolada pela injustiça e miséria, não precisamos multiplicar nada. O Brasil não precisa multiplicar terras (somos um dos maiores países do mundo) nem precisa multiplicar a renda (somos uma das maiores potências econômicas do mundo). Não! O que precisamos é de uma partilha e uma redistribuição das terras e da renda. O que precisamos é uma mudança de mentalidade, de coração e das estruturas, e não milagres paliativos. A história de João e dos outros evangelistas insiste que a solução para a carência se acha na solidariedade, na partilha e na redistribuição, a partir de nossa fé no Deus da Vida.
Outro elemento importante no relato joanino do evento é a atuação do menino que tinha cinco pães de cevada e dois peixinhos, era seu lanche. Mesmo sendo suficiente somente para ele, o jovem dispõe dos pães e peixes, por meio de André. Esse gesto de partilha, abençoado por Jesus, faz com que todos se fartem. O relato ressalta que foram pães de cevada, a comida do pobre. Também aqui há uma releitura de um evento na vida do profeta Eliseu, que também “multiplicou” pães de cevada (2 Reis 4,42-44). Sem a colaboração desse rapaz simples, oferecendo o pouco que tinha, Jesus não poderia ter alimentado essas pessoas. Assim, o texto nos desafia a descobrirmos quais são os “cinco pães de cevada” que cada um tem e a colocá-los a serviço da comunidade. Quando todos partilham o pouco que têm, sobrará. Quando cada um que tem algo o segura para si, falta para muitos.
Já mencionamos que João, colocando o relato no capítulo sexto, no qual há o discurso do Pão da Vida, focaliza o aspecto eucarístico. Participar da Eucaristia é comprometermo-nos com o mundo de solidariedade e partilha, onde os bens materiais (mais do que suficientes) serão distribuídos e partilhados, criando, assim, de uma maneira real entre nós, o Reinado de Deus. Como diz um canto de comunhão, “Comungar é tornar-se um perigo, viemos pra incomodar”. A mensagem da “multiplicação” dos pães incomoda, e muito, pois aponta para as consequências da nossa participação na Eucaristia.
Padre Tomaz Hughes, SVD, biblista e assessor da CRB e do Cebi. Dedicou-se a cursos e retiros bíblicos em todo o Brasil. Publicou diversos artigos e o livro “Paulo de Tarso: discípulo-missionário de Jesus”. Faleceu em 15 de maio de 2017. Suas reflexões bíblicas são muito atuais.