“Eu Sou o Pão da Vida”
João 6,24-35
Continuamos uma série de leituras dominicais a partir do sexto capítulo de João. Esse capítulo é extraordinariamente denso em conteúdo e muito carregado com a simbologia judaica da época de Jesus. Hoje o tema central versa sobre Jesus como “O pão da vida”.
No Antigo Testamento, muitas vezes, o termo “pão” é usado como símbolo da Palavra de Deus; por exemplo, em Isaías (55,10-11); Amós (8,11-12) fala de fome, mas não fome de pão nem sede de água, mas fome de escutar a Palavra de Deus; A Sabedoria convida os simples a comerem de seu pão e beberem de seu vinho (Provérbios 9,5); Sirac (Eclesiástico) fala da sabedoria que alimenta as pessoas com o pão de compreensão e a água de sabedoria (Eclesiástico 15,4). Até o maná no deserto chegou a ser usado como símbolo da Torá ou Lei (Deuteronômio 8,2-3). Podemos ligar essas ideias com capítulo 6 de João.
Divisão do capítulo:
- 1-15: multiplicação e partilha dos pães;
- 16-21: Jesus anda sobre as águas;
- 22-24: situa o discurso;
- 25-29: introdução ao discurso;
- 30-40: discurso;
- 30-34: 1ª parte;
- 35-40: 2ª parte;
- 41-51: 2ª parte;
- 52-58: 3ª parte;
- 50: aparte;
- 60-61: reação e opção dos discípulos.
O início do relato deixa claro que a multidão reconhece o poder de Jesus, mas é incapaz de entrar mais profundamente no sentido de seus sinais. Lembremos que o Quarto Evangelho não usa o termo “milagre” para as sete ações principais de Jesus (água transformada em vinho, em 2,1-12; a cura do filho do funcionário real, em 4,46-54; a cura de um paralítico na piscina, em 5,1-18; a partilha dos pães, em 6,1-15; o caminhar sobre as águas, em 6,16-21; a cura do cego de nascença, em 9,1-41; e a ressurreição de Lázaro, em 11,1-44), mas “sinais”, embora haja ainda edições da Bíblia que traduzem erradamente o termo. Com certeza, são “milagres”, mas João quer enfatizar o fato de serem sinais, ou seja, que devemos aprofundar o que eles querem nos ensinar sobre a identidade e missão de Jesus.
O povo busca as vantagens imediatas que pode receber de Jesus, corre atrás dos milagres, mas não entende o sentido do sinal que cada milagre mostra. Jesus insiste que a fé nasce da capacidade de reconhecer as obras dele como sinais que demonstram uma verdade mais profunda, que Ele é o alimento que faz viver. Assim, o Filho do Homem vem do céu, e os sinais que Jesus opera garantem sua origem e sua missão. Ele quer que creiam e recebam o que Deus lhes oferece nele.
A turba quer saber de um sinal para que possa “ver” e “crer” em Jesus. Mas, na visão de João, o “ver” real é conseguir descobrir a realidade completa de quem realiza os sinais, e não parar somente nos sinais externos. No fundo, a multidão quer que Jesus confirme suas expectativas messiânicas, realizando milagres, e não entende a profundidade da mensagem de Jesus, que ultrapassa tais expectativas.
Os próprios judeus começam a falar da história do maná no deserto. No tempo de Jesus, muitos doutores da Lei ensinavam que o dom do maná era o maior prodígio do tempo do Êxodo. Jesus reformula as expectativas apocalípticas da época, que esperavam de novo maná do céu, insistindo que o verdadeiro pão da vida é dado pelo Pai e não por Moisés; que o Pai “dá”, não “deu”, e que o pão que o Pai dá é aquele que veio dar a vida ao mundo. Jesus é realmente o “pão da vida” porque crer nele é participar da verdadeira vida.
Nesse trecho, encontramos Jesus usando a frase “Eu Sou”, o que soava aos ouvidos dos judeus da época como referência ao nome de Deus na história do Êxodo “Eu Sou aquele que sou” (Êxodo 3,14). Tudo aponta para a verdadeira origem de Jesus, e o fato de que a verdadeira vida só se acha nele.
Hoje esses versículos nos desafiam para que ultrapassemos os limites de uma religião superficial e para que nos mergulhemos no mistério de Jesus, criando relacionamento cada vez mais profundo com ele e assumindo uma vida de verdadeiros discípulos-missionários, apaixonados por ele e por seu projeto, o projeto daquele que veio para que “todos tenham a vida e a tenham em abundância” (João 10,10).
Padre Tomaz Hughes, SVD, biblista e assessor da CRB e do Cebi. Dedicou-se a cursos e retiros bíblicos em todo o Brasil. Publicou diversos artigos e o livro “Paulo de Tarso: discípulo-missionário de Jesus”. Faleceu em 15 de maio de 2017. Suas reflexões bíblicas são muito atuais.