“Adorarás o Senhor teu Deus e só a ele servirás”
Lucas 4,1-13
O texto expressa a luta interna de Jesus (que, na realidade, deu-se ao longo de sua vida pública) para discernir o caminho a seguir, após assumir sua missão no batismo. Jesus era totalmente humano e assim enfrentava sempre as tentações de seguir o caminho de um messianismo falso, que não fosse o caminho do Servo de Javé. A experiência de Jesus é como a nossa: entre nosso compromisso com o projeto de Deus e sua vivência prática, existem muitas tentações.
Jesus estava “repleto do Espírito Santo” e era “conduzido pelo Espírito através do deserto”. O Espírito Santo não o conduz à tentação, mas é a força sustentadora do Filho de Deus durante suas tentações. Como o Espírito dava força a Jesus, Lucas ensina às suas comunidades que elas também poderão contar com esse apoio nos momentos difíceis da vivência de sua fé.
As tentações são as mesmas que enfrentamos em nossa caminhada da fé hoje. Primeiramente, Jesus é tentado a mandar que uma pedra se torne pão. Aqui é a tentação do “prazer”, logo que enfrente sofrimento e sacrifício por causa de sua missão, Jesus é tentado a escapar. Uma tentação das mais comuns hoje, em um mundo que prega a satisfação imediata de nossos desejos, em uma sociedade que cria necessidades falsas por meio de sofisticadas campanhas de propaganda. Uma sociedade de individualismo, na qual a regra é “se quiser, faça!”, em que o sacrifício, a doação e a solidariedade são considerados como ladainha dos perdedores.
Jesus é contundente: “Não só de pão vive o homem” (vers. 4). Vivemos de pão, mas não só. Jesus não é contra o necessário para viver dignamente, mas salienta que não é somente a posse de bens que traz a felicidade e sim a busca de valores mais profundos, como a justiça, a partilha, a doação, a solidariedade com os sofredores. Não faz contraste falso entre bens materiais e espirituais; precisa-se de ambos para que se tenha a vida plena. Jesus desautoriza tanto os que buscam sua felicidade na simples posse de bens como os que dispensam a luta pelo pão de cada dia para todos. Nada de materialismo e nada de uma religião que não inclui o compromisso com a solidariedade, a justiça social e uma sociedade mais fraterna, justa e igualitária.
A segunda tentação pode ser vista como a do “ter”. Algo atual! Vivemos na sociedade pós-moderna da globalização do mercado, do neoliberalismo, do “evangelho” do mercado livre. Diariamente, a televisão traz para dentro de nossas casas a mensagem de que é necessário “ter mais” e que não importa “ser mais”. A tentação vem em forma atraente. Até a Igreja pode cair na tentação de achar que a simples posse de bens, que podem ser usados em favor da missão, garantirá uma atuação mais evangélica. Somos tentados a não acreditar na força dos pobres, das “pessoas comuns”, dos leigos e leigas, dos “fracos” aos olhos da sociedade, ou seja, de não seguir o caminho do carpinteiro de Nazaré. Jesus também enfrentou essa tentação. Ele, que veio para ser humano com a humanidade, pobre com os pobres, para mostrar o Deus que opta preferencialmente pelos marginalizados, é também tentado a confiar nas riquezas. Para o diabo, e para nosso mundo que idolatra o bem-estar material e o lucro, mesmo às custas da justiça social, Jesus afirma: “Tu adorarás o Senhor teu Deus e somente a ele servirás” (vers. 8).
A terceira tentação pode ser entendida como a do “poder”. Uma tentação permanente na história das Igrejas e dos cristãos. Quantas vezes, para “evangelizar”, as Igrejas confiavam mais no poder secular do que na fragilidade da cruz… Quanta aliança entre a cruz e a espada; a América Latina que o diga! Ainda hoje, enfrentamos esta tentação: não de ter poder para servir, mas de confiar no poder deste mundo, mais do que na fraqueza aparente de Deus, assim contradizendo o que Paulo afirmava: “A fraqueza de Deus é mais forte do que os homens” (1 Coríntios 1,25) e “Deus escolheu o que é fraqueza no mundo para confundir o que é forte” (1 Coríntios 1,27).
Jesus, que veio para servir e não para ser servido, que veio como o Servo de Javé e não como dominador, teve de clarear sua vocação e despachar o diabo com a frase: “Não tentarás o Senhor teu Deus”. Podemos agradecer o exemplo do Papa Bento XVI, que soube abrir mão do poder para o bem da Igreja. Nesse gesto profético, talvez tenha proferido sua melhor pregação: o poder existe somente para servir o bem comum.
Realmente podemos nos encontrar nas tentações de Jesus. São as do mundo moderno: o ter, o poder e o prazer. Todas as coisas são boas em si, mas altamente destrutivas quando tomam o lugar de Deus em nossas vidas. Jesus teve de enfrentar o que nós enfrentamos: o “diabo” que está dentro de nós, o tentador que procura nos desviar de nossa vocação de discípulos-missionários, discípulas-missionárias. O texto nos coloca diante da orientação básica para quem quer vencer: “Adorarás o Senhor teu Deus e somente a ele servirás” (vers. 8).
Padre Tomaz Hughes, SVD, biblista e assessor da CRB e do Cebi. Dedicou-se a cursos e retiros bíblicos em todo o Brasil. Publicou diversos artigos e o livro “Paulo de Tarso: discípulo-missionário de Jesus”. Faleceu em 15 de maio de 2017. Suas reflexões bíblicas são muito atuais.