“Jesus faz bem a todas as coisas”
Marcos 7,31-37
Os eventos relatados no texto de hoje se situam no território pagão de Tiro e Sidônia (hoje, Líbano). Marcos faz questão de sublinhar o contexto geográfico, talvez para enfatizar a missão aos gentios (pagãos) que marcava sua Igreja. Mais uma vez, estamos diante de um milagre de Jesus que manifesta o poder de Deus que age nele, que causa espanto e alegria entre as testemunhas, e que leva Jesus a proibir que a notícia se espalhe no território.
Em si, o relato segue o roteiro de tantos outros: uma pessoa sofrida (neste caso, sofrendo de surdez e incapaz de falar corretamente), a compaixão da parte de Jesus, que o leva a atender ao pedido de uma cura, a cura em si, a proibição de espalhar a notícia (o chamado “segredo messiânico”) e a incapacidade das testemunhas de guardar o segredo.
A violação da proibição por parte da multidão traz à tona a questão da verdadeira identidade de Jesus, dando a impressão de que Ele é muito mais do que um simples curador. As palavras que expressam o entusiasmo da multidão diante dele (versículo 37) são tiradas de uma seção apocalíptica de Isaías, sugerindo que, nas atividades de Jesus, o Reino de Deus se faz presente.
Mais uma vez, o segredo messiânico em Marcos nos faz perguntar sobre seu sentido. Provavelmente faz parte da insistência de Marcos, de que Jesus é mais do que um taumaturgo ou milagreiro, e que sua verdadeira identidade somente se revelará em sua Cruz e Ressurreição. Pois é somente lá, e não diante dos milagres, que Jesus é proclamado “Filho de Deus” por uma pessoa humana, o oficial que exclamou, ao pé da Cruz, vendo como Jesus havia expirado: “De fato, esse homem era mesmo Filho de Deus” (Marcos 15,39).
Para Marcos, uma fé baseada nos milagres é sempre ambígua, pois pode levar ao seguimento de Jesus por motivos errôneos, interesseiros e duvidosos. Para corrigir essa tendência em sua comunidade, ele insiste que só se pode proclamar Jesus com o título messiânico “Filho de Deus” ao pé da Cruz, onde não há lugar para dúvidas, pois só se pode crer na fraqueza de Deus, como diria Paulo, que é mais forte do que a força humana (1 Coríntios 1,25). Um alerta para muitos cristãos hoje.
A proclamação das testemunhas que Jesus “fez os surdos ouvir e os mudos falar” alude a Isaías (35,5-6), que faz parte da visão apocalíptica do futuro glorioso de Israel (Isaías, capítulos 34 e 35, relacionado com Isaías, capítulos 40 a 66). O uso aqui desse texto veterotestamentário indica que o futuro glorioso do novo Israel já está presente no ministério de Jesus.
Podemos ver um sentido mais simbólico para nossos dias na cura relatada: o de abrir os ouvidos e soltar as línguas. Pois o sistema hegemônico de hoje e os meios de comunicação, frequentemente atrelados e coniventes, procuram, em geral, tapar os ouvidos do povo diante dos gritos dos sofridos; pois fazem questão de camuflar a realidade sofrida de milhões, escondendo a realidade ou banalizando-a, como fica claro na maioria dos noticiários de televisão. Também as forças dominantes deixam cada vez mais os excluídos sem voz: em nossa sociedade materialista e consumista, só pode ter voz ativa quem produz e consome. Diante da surdez e mudez físicas, Jesus cura.
O Evangelho e a atividade evangelizadora das igrejas devem ajudar as pessoas para que ouçam o grito dos oprimidos e para que ajudem a devolver a voz àqueles a quem lhes foi tirada. Sete de Setembro é o dia do “Grito dos Excluídos”, uma maneira de as Igrejas e todas as pessoas de boa vontade assinalarem que nossa luta está em favor dos excluídos e menos favorecidos, e que essa atividade não se limita a uma passeata nesse dia somente, mas que é a tônica de nossa ação evangelizadora, retomada com muita força no Documento de Aparecida e em tantos outros documentos do Magistério e da CNBB, e sempre enfatizada nos pronunciamentos e escritos do Papa Francisco.
“Jesus fez bem todas as coisas: fez os surdos ouvirem e os mudos falarem!” (vers. 37). Que se possa dizer isso de todas as Igrejas e pastorais. Que ajudemos a devolver a capacidade de ouvir os gemidos dos sofredores a tantas pessoas ensurdecidas pela ideologia dominante e que ajudemos os sem voz a recuperarem a voz ativa nas decisões das Igrejas e da sociedade em geral.
Padre Tomaz Hughes, SVD, biblista e assessor da CRB e do Cebi. Dedicou-se a cursos e retiros bíblicos em todo o Brasil. Publicou diversos artigos e o livro “Paulo de Tarso: discípulo-missionário de Jesus”. Faleceu em 15 de maio de 2017. Suas reflexões bíblicas são muito atuais.