27º Domingo do Tempo Comum

“O que Deus uniu, o homem não separe”
Marcos 10,2-16

Durante a caminhada de Jesus rumo a Jerusalém, onde o poder central religioso-político vai condená-lo à morte, no intuito de acabar não somente com a pessoa dele, mas com seu projeto, o Senhor, no texto de hoje, entra primeiro em controvérsia com os fariseus, os guardiães da prática fiel da Lei. Estes, que gozavam de muito prestígio diante da população mais simples, outorgavam-se o direito de serem os únicos intérpretes autênticos da vontade de Deus, por meio de sua interpretação da Lei. Por isso entram em conflito com Jesus, não na busca de conhecer melhor a vontade do Pai, mas, como ressalta o texto, “para tentá-lo” (versículo 2). O campo de batalha escolhido era o debate sobre o divórcio. O texto de referência para eles era Deuteronômio (24,1-4), no qual não se trata da legitimidade do divórcio, mas dos critérios para que possa ocorrer.

O Evangelho de Mateus, no capítulo 19, deixa mais claro do que Marcos o sentido do debate (veja Mateus 19,1-9). O pano de fundo eram os critérios necessários para que um homem pudesse divorciar-se de sua mulher (nem se cogitava a mulher pudesse divorciar do marido, pois ela era considerada “objeto” que pertencia ao homem!). No tempo de Jesus, havia duas tendências, simbolizadas pelas escolas rabínicas dos grandes fariseus Hillel e Shammai. Uma escola, mais laxista (Hillel), ensinava que se podia divorciar da mulher por qualquer motivo, mesmo dos mais banais. A escola mais rigorosa (do Shammai) apenas permitia o divórcio por motivos muito sérios. Por isso, em Mateus a pergunta se define melhor: “é permitido divorciar a mulher por qualquer motivo que seja?” (Mateus 19,4).

Em ambos os evangelhos, Jesus se recusa a entrar no debate de casuística que cercava a questão e se limita a reafirmar o projeto do Pai para o casamento: “Portanto, o que Deus uniu, o homem separe”. Jesus reafirma, com toda a firmeza, o ideal do casamento cristão: uma união permanente, baseada no amor e fortalecida pela graça do sacramento.

Seria inútil buscar nesse trecho uma teologia mais desenvolvida do casamento, muito menos orientações pastorais para os problemas práticos de casamentos malsucedidos, pois isso não foi a intenção do autor. Marcos simplesmente reafirma o princípio de que “o que Deus uniu, o homem não deve separar”. Deixa em aberto a questão de quando é que Deus realmente uniu o casal. Será que, só porque passaram por uma cerimônia validamente celebrada na igreja, um casal é necessariamente unido por Deus? Os problemas reais são muito mais complexos, angustiantes e difíceis de serem solucionados, como reconhece claramente o Papa Francisco, bem como qualquer pessoa com coração pastoral.

O trecho continua com a questão das crianças. A questão aqui não é a criança como símbolo da inocência, mas de dependência. As crianças e os que se assemelham com elas vivem essa situação de dependência, de “sem-poder”. Quem quer entrar no Reino de Deus terá que se ab-rogar de todo poder dominador, tornando-se como criança.

Recusando-se a aceitar a situação em que a mulher era simples objeto de posse do homem e assim passível de ser divorciada, e propondo o fraco e dependente como modelo em uma sociedade que valorizava o prepotente, Jesus mostra que os valores do Reino de Deus estão na contramão dos valores da sociedade de seu tempo (e de hoje). Propõe uma igualdade de dignidade entre homem e mulher, uma fidelidade e compromisso permanentes, e a busca de uma vida de serviço e não de dominação. Realmente, uma proposta no contrafluxo da sociedade pós-moderna, que nega o permanente, perpetua o machismo e admira o poderoso e dominador. O texto de hoje nos convida para que entremos com Jesus na “contramão” e criemos uma sociedade baseada em outros valores do que os que estão hoje em vigor, às vezes, até no seio das próprias igrejas.

Padre Tomaz Hughes, SVD, biblista e assessor da CRB e do Cebi. Dedicou-se a cursos e retiros bíblicos em todo o Brasil. Publicou diversos artigos e o livro “Paulo de Tarso: discípulo-missionário de Jesus”. Faleceu em 15 de maio de 2017. Suas reflexões bíblicas são muito atuais.

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