“Dai, pois, a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”
Mt 22,15-21
Com o texto deste domingo, entramos num bloco de quatro unidades tratando de diversas controvérsias com lideranças judaicas diferentes: os fariseus, os herodianos, os saduceus. A discussão de hoje talvez seja a mais conhecida, mas tem sido interpretada, muitas vezes, de maneira errada, projetando sobre Jesus os nossos preconceitos políticos e sociais.
É necessário entender que não se trata de uma pergunta sincera feita a Jesus, mas de uma cilada. Quem a faz são membros de dois grupos politicamente opostos e antagônicos: os herodianos, “pelegos” da dominação romana, e os fariseus, muitos dos quais olhavam os herodianos como impuros, pela sua colaboração com o poder estrangeiro. Se Jesus responder que é lícito pagar o imposto, correrá o risco de ser apresentado pelos nacionalistas como um opressor do povo. Se Ele negar, poderá ser denunciado pelos herodianos como subversivo político. É uma situação semelhante à da pergunta de João (8,1-11, a mulher adúltera), em que qualquer resposta deixaria Jesus em maus lençóis. Como naquela ocasião, Jesus se mostra verdadeiro mestre, escapando da cilada e, por cima, dando um ensinamento importante.
Primeiramente, Ele deixa claro que entende a jogada: “Hipócritas, por que me armais uma cilada?”. Coloca os seus interlocutores contra a parede, pedindo uma moeda do imposto e perguntando: “De quem são esta efígie e esta inscrição?”. A inscrição seria “Tibério César, Filho do Divino Augusto, Sumo Pontífice”, mostrando as pretensões do Império Romano à divinização.
Com a resposta “Dai, pois, a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”, Jesus joga para os seus ouvintes a pergunta essencial: o que pertence a César, e o que pertence a Deus? A Deus pertence a divindade, não ao Império Romano nem a César. Assim, ele evita confirmar o projeto nacionalista violento de muitos judeus de sua época, mas condena também qualquer projeto que divinizasse o poder civil. Uma advertência também para nossos dias, quando o único poder imperial hegemônico (muito semelhante à situação do Império Romano do tempo de Jesus) reivindica para si o poder de impor as suas decisões sobre todas as nações, taxando de “terrorista” quem discorda de sua dominação ideológica, econômica e militar. O poder civil existe para cuidar do povo (que é de Deus) e não para explorá-lo. Jesus assim nega as aspirações imperialistas e, evitando uma resposta direta à pergunta, enfatiza e relativiza todo e qualquer poder, pois o verdadeiro poder somente pertence a Deus.
Em nossos dias, ainda existem poderes com as mesmas aspirações dos romanos. Embora não digam abertamente, os arautos do neoliberalismo desenfreado divinizam um sistema que apenas visa ao lucro, à ganância e explora o povo sofrido. As palavras de Jesus nos lembram de que nenhum cristão pode compactuar com qualquer sistema, seja político, econômico ou religioso, que atribui a si o que pertence a Deus.
O texto, de forma alguma, justifica um dualismo entre o espiritual (de Deus) e o material (de César). Pelo contrário, mostra que o poder político, econômico e religioso deve estar a serviço do bem comum, pois, se não, está roubando o que é de Deus: o seu povo. Não se pode entregar às garras de um poder opressor, seja ele estrangeiro ou nacional, o que pertence ao Pai. O poder é legítimo quando está a serviço da vida e do bem-estar comum, e não de uns poucos privilegiados. “Dar a Deus o que é de Deus” não se resume em ritos religiosos, mas na construção de uma sociedade de solidariedade, justiça e fraternidade, em que todos possam “ter a vida e a vida em abundância” (Jo 10,10). Conforme lutamos por esse objetivo, estamos dando “a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”.
Padre Tomaz Hughes, SVD, biblista e assessor da CRB e do Cebi. Dedicou-se a cursos e retiros bíblicos em todo o Brasil. Publicou diversos artigos e o livro “Paulo de Tarso: discípulo-missionário de Jesus”. Faleceu em 15 de maio de 2017. Suas reflexões bíblicas são muito atuais.Pe. Tomaz Hughes, SVD