2º Domingo da Páscoa

“A paz esteja com vocês!”
João 20,9-31

No texto anterior ao de hoje, Maria Madalena trouxe a notícia da ressurreição aos discípulos incrédulos. Agora é o próprio Jesus que aparece a eles. Não há reprovação nem queixa em suas palavras, apesar da infidelidade de todos eles, mas somente a alegria e a paz as quais Ele já havia prometido no último discurso. Por duas vezes, Jesus proclama seu desejo para a comunidade de seus discípulos: “A paz esteja com vocês”. O tema da paz, do shalom, é importante na vida de Jesus.

No Discurso de Despedida, na tradição da Comunidade do Discípulo Amado, no contexto de uma certa angústia humana e da insegurança, junto com a promessa do dom do Paráclito, Jesus deixa com os seus o grande dom da paz: “Eu deixo para vocês a paz, eu lhes dou a minha paz. A paz que eu dou para vocês não é a paz que o mundo dá” (João 14,27). Ele usou a palavra tradicional dos judeus para a paz: shalom. É uma paz baseada na vinda do Espírito, que será atualizada no texto de hoje: “A paz esteja com vocês! Recebam o Espírito Santo” (João 20,21-22). Enfatiza que não é a paz como o mundo a entende; muitas vezes, simplesmente como a ausência de briga.

Frequentemente, a paz que o mundo dá é aquela falsa, que depende da força das armas para reprimir as legítimas aspirações do povo sofrido, como tantos países experimentaram e continuam a experimentar hoje, durante as ditaduras de direita e de esquerda. O shalom é tudo o que o Pai quer para seu povo. Só existe quando reina o projeto de vida de Deus. Implica a satisfação de todas as necessidades básicas da pessoa humana, da libertação da humanidade do pecado e de suas consequências. O shalom dos discípulos não pode ser perturbado pela partida de Jesus, pois é pela volta do Filho para o Pai que o shalom vai se instalar.

O shalom, a verdadeira paz, é um dom de Deus, mas também um desafio para nós, seus discípulos e discípulas. Pede a colaboração humana. Diante de tantas barbaridades hoje, de tanta violência no campo, da exploração do latifúndio, do tráfico de drogas e de pessoas, da impunidade, qual deve ser a atitude do cristão? Se nós acreditamos no shalom, nunca podemos compactuar com sistemas repressivos ou elitistas que tiram da maioria (ou mesmo de uma minoria) os direitos básicos que pertencem a todos os filhos de Deus. Às vezes, esse shalom convive ao lado do sofrimento e perseguição por causa do Reino; mas quem experimenta, na intimidade, a presença da Trindade também experimenta a verdade da frase de Jesus: “Não fiquem perturbados nem tenham medo” (João 14,27), pois disse Ele, “Eu venci o mundo” (João 16,33).

Com frequência, uma leitura fundamentalista do Evangelho, fortemente influenciada por ideologias da direita, insistia que Jesus veio trazer a “paz”, entendido como “ordem e progresso”, na visão positivista das elites dominantes. Mas o próprio texto do Evangelho indica que esse tipo de paz estava longe da mente de Jesus. Ele mesmo diz com todas as letras, em Mateus 10,34: “Não pensem que eu vim trazer paz à terra; eu não vim trazer a paz, e sim a espada”.

Obviamente, Jesus não diz que veio trazer a violência; pelo contrário, veio desmascarar uma paz imposta pela força, com base ideológica numa falsa imagem de Deus, e que essa ação profética dele revelaria as divisões já existentes na sociedade, nas religiões, no coração das pessoas. Pois sua prática e pregação exigiram uma tomada de posição diante da violência, ostensiva ou ocultada. A não violência não é sinônima à não ação. Pelo contrário, levou Jesus a lançar-se em uma vida dedicada aos valores do Reino, entre os quais o shalom tinha lugar premente; por isso Ele foi morto pelos interesses ameaçados por essa pregação do verdadeiro shalom, uma aliança de poderes religiosos, políticos, judiciais e econômicos. Por isso devemos sempre “fazer a memória de Jesus”, de sua pessoa e de seu projeto, para que tenhamos critérios certos para verificar a presença (ou ausência) do shalom em nossa sociedade e nos comprometermos com a criação do mundo mais justo que Deus quer.

O Reino de Deus não é algo escrito em uma tábua rasa. Já existe a força contrária: a do antirreino. Assim também o shalom não nasce em um vácuo: cria-se em oposição à realidade dura da violência, mesmo quando disfarçada como paz. Por isso será sempre conflituoso, pois necessariamente provocará a reação dos que oprimem e violentam. A dedicação a ele exigirá uma mística profunda. Uma vida dedicada à construção do shalom tem como fundamento uma profunda experiência de Deus.

A luta pela paz, pelos oprimidos, por um mundo de igualdade e solidariedade, para nós, cristãos, não pode nascer de uma simples análise de conjuntura nem de uma indignação ética, por tão necessários que esses elementos possam ser. A inspiração última de nossa luta pelo shalom tem de ser enraizada em nossa fé: por ser coerente com o Deus em quem nós acreditamos, o Deus que vê a miséria de seu povo, vítima da violência, que ouve seu clamor em favor da verdadeira paz, que conhece seus sofrimentos e que desce para libertá-lo de todas as formas de violência que atentem contra a vida (Êxodo 3,7-10). É coerência com o seguimento de Jesus, o Verbo Divino que se fez carne e armou sua tenda no meio de nós (João 1,1.14), vindo para que todos tenham a vida e a tenham plenamente (João 10,10). Por isso, devemos ouvir, de novo, a voz profética de Jesus que conclama todos nós à conversão: “Convertam-se e acreditem na Boa Notícia” (Marcos 1,14).

As raízes da violência, do antirreino, estão dentro de todos nós, como indivíduos e comunidade. Quando compactuamos com qualquer discriminação, quando defendemos a violência contra qualquer pessoa ou grupo, quando aplaudimos os maus-tratos contra quem quer que seja, quando interpretamos a vida a partir dos opressores, quando nos entregamos à inveja e ao ciúme, ao ódio e à raiva, ao racismo, machismo, classismo ou a qualquer outro “ismo” que nos divide, estamos nos opondo ao shalom de Deus. Quando colocamos a propriedade particular como um valor acima da vida humana, quando defendemos a pena da morte, quando apoiamos politicamente estruturas que acumulam bens nas mãos de poucos, quando aceitamos a ideologia do neoliberalismo, com o seu deus do lucro, o seu evangelho de competitividade que faz do irmão e irmã meus rivais, estamos contribuindo para que o shalom não aconteça.

A batalha (e é batalha) contra a violência, em favor da paz, vai se travar em muitas frentes: dentro de cada um de nós, nas instâncias de poder político, religioso, eclesial, social e cultural. Os cristãos de todas as Igrejas terão uma responsabilidade muito grande de se tornarem arautos do shalom, protagonistas de uma nova ordem social, seguindo as pegadas do Mestre que desmascarava a violência sofrida por seu povo (muitas vezes, em nome de Deus) e trouxe a proposta de um mundo diferente, baseado nos valores do Reino.

Jesus soprou sobre os discípulos, como Deus fez (é o mesmo termo) sobre Adão, quando infundiu nele o espírito de vida; Jesus os recria com o Espírito Santo. Normalmente, imaginamos o Espírito Santo descendo sobre os discípulos em Pentecostes, como Lucas descreve em Atos, mas aquilo era a descida oficial e pública do Espírito para dirigir a missão da Igreja no mundo. Para João, o dom do Espírito, que de sua natureza é invisível, flui da glorificação de Jesus, de sua volta ao Pai. O dom do Espírito nesse texto tem a ver com o perdão dos pecados.

Mais uma vez, no primeiro dia da semana, Jesus aparece aos discípulos (notem a ênfase sobre o domingo: duas vezes). Desta vez, Tomé está presente. Ele representa os discípulos da comunidade joanina do fim do século, que estavam vacilando em sua fé no Ressuscitado, diante dos sofrimentos e tribulações da vida. Assim nos representa quando nós vacilamos e duvidamos. Jesus nos fortalece com as palavras “Felizes os que acreditaram sem ter visto!”. Esta, muitas vezes, será a realidade de nossa fé: acreditar, contra todas as aparências, que o bem é mais forte do que o mal, a vida do que a morte, o shalom do que a prepotência. Somente uma fé profunda e uma experiência da presença do Ressuscitado vai nos dar essa firmeza.

Tomé confessa Jesus nas palavras que o salmista usa para Javé (Salmo 35,23). No primeiro capítulo do Evangelho de João, os discípulos deram a Jesus uma série de títulos que indicaram um conhecimento crescente de quem Ele era; aqui Tomé lhe dá o título final e definitivo: Jesus é Senhor e Deus.

Nessa proclamação triunfante da divindade de Jesus, o Evangelho terminava (o capítulo 21 é um epílogo, adicionado mais tarde). No início, João nos informou que “o Verbo era Deus”. Agora, Ele repete essa afirmação e abençoa todos os que o aceitam baseados na fé! A meta do Evangelho foi alcançada: mostrar a divindade de Jesus, para que, acreditando, todos pudessem ter a vida nele.

Padre Tomaz Hughes, SVD, biblista e assessor da CRB e do Cebi. Dedicou-se a cursos e retiros bíblicos em todo o Brasil. Publicou diversos artigos e o livro “Paulo de Tarso: discípulo-missionário de Jesus”. Faleceu em 15 de maio de 2017. Suas reflexões bíblicas são muito atuais.

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