“O bom pastor se despoja da própria vida por suas ovelhas”
João 10,11-18
Hoje é o dia Mundial de Oração pelas Vocações, ou “Domingo do Bom Pastor”. O texto de hoje nos demonstra a compreensão que a comunidade do Discípulo Amado tinha da paixão, morte e ressurreição de Jesus.
A imagem escolhida é a do “pastor”, uma imagem muito usada nos escritos do Antigo Testamento (Salmo 40,11; Ezequiel 34,15; 37,24; Eclesiástico 18,13; Zacarias 11,17, etc.). Algumas vezes, é aplicada ao próprio Deus (Salmo 23,1; Isaías 40,11; Jeremias 31,9); outras, ao futuro rei messiânico (Salmo 78,70-72; Ezequiel 37,24); e outras, aos líderes político-religiosos de Israel (Jeremias 2,8; 10,21; 23,1-8; Ezequiel 34). Também os evangelistas sinóticos usaram-na bastante (Marcos 6,34; 14,27; Mateus 9,36; 18,12-13; 25,32; 26,31; Lucas 15,3-7). Jesus é realmente pastor, pois Ele, o Filho do Homem, participa da condição humana, inclusive da morte, para nos conduzir à vida eterna. A palavra grega aqui usada para “bom”, “kalos”, significa “ideal” ou “nobre”, e não somente eficiência em sua função. Assim é Jesus, pois livremente despoja-se de sua própria vida para salvar a vida do seu rebanho.
O texto contrasta a ação de Jesus com a atuação dos pastores mercenários, que não defendem o rebanho, mas somente cuidam dos próprios interesses. Aqui o texto está enraizado na tradição profética de Ezequiel (capítulo 34, o qual vale a pena ler) que condenava os “maus pastores” do povo de Deus: os líderes religiosos e políticos de seu tempo (antes do Exílio e nos anos entre a primeira deportação para Babilônia e a destruição de Jerusalém, em 587 a.C.), que somente exploravam o povo para o seu próprio proveito, abandonando-o nas horas de maior necessidade. Quanta coisa do tempo de Ezequiel e de Jesus pode ser aplicada quase que diretamente a muitos líderes políticos (e, às vezes, religiosos) de nossos tempos.
O trecho destaca o verbo “conhecer”: Jesus conhece suas ovelhas como conhece o Pai e é conhecido pelo Pai. “Conhecer”, na linguagem bíblica, não significa um saber intelectual, mas implica um relacionamento íntimo de amor e solidariedade. O conhecimento que Jesus tem de seus discípulos nasce e se plenifica no amor que existe entre o Pai e o Filho. Não é um amor só de emoções ou sentimentos, mas um amor exigente, de assumir o outro até o ponto de doar a vida. Assim, a morte na Cruz (assumida livremente por Jesus) é a expressão suprema desse amor.
O amor não pode se restringir aos irmãos e irmãs da comunidade. A utopia proposta por Jesus é da união entre todos “os seus”. Aqui, talvez haja uma referência às outras comunidades não joaninas do tempo do escrito, mas também podemos aplicar o texto à missão universal da Igreja: a de colaborar na realização do Reino de Deus, pois todos os povos do mundo, sem distinção de raça, cor, cultura ou religião, são misteriosamente ligados a Jesus, morto e ressuscitado. Não devemos imaginar esse sonho como um crescimento da Igreja visível até que toda a humanidade faça parte dela, mas muito mais como a realização do pedido do Pai-nosso, “Seja feita a vossa vontade, assim na terra como no Céu”, em que se procura o bem, a justiça e a fraternidade, mesmo fora da Igreja visível, onde se realiza o Reino, ou Reinado, de Deus.
Como seguidores do Bom Pastor, também somos convidados à vivência desse mesmo amor que exige o despojo da própria vida. Isso não implica necessariamente a morte física, mas a morte ao egoísmo e a todos os “ismos” que nos dividem, seja por causa do gênero, raça, cor, classe ou cultura. Onde há luta em defesa da vida, lá existe a missão do Bom Pastor. Ele que veio “para que todos tenham a vida e a tenham plenamente!” (João 10,10).
Padre Tomaz Hughes, SVD, biblista e assessor da CRB e do Cebi. Dedicou-se a cursos e retiros bíblicos em todo o Brasil. Publicou diversos artigos e o livro “Paulo de Tarso: discípulo-missionário de Jesus”. Faleceu em 15 de maio de 2017. Suas reflexões bíblicas são muito atuais.