“Deus enviou o seu Filho ao mundo não para julgá-lo, mas para que seja salvo por ele”
João 3,14-21
Podemos dizer que o texto de hoje inclui uns versículos (16 a 21) que podem ser entendidos como resumo de todo o Evangelho de João. Inclui também muitas referências ao Antigo Testamento e ao pensamento judaico da época.
Inicia-se com a primeira de três frases em João sobre o “levantar” do Filho do Homem, aqui usando paralelismo com a serpente de bronze de Números (21,1-9). O termo “levantado” refere-se tanto ao ser elevado na Cruz como ao ser levantado aos céus. A Cruz é o primeiro passo na volta de Jesus ao Pai.
A parte central do texto insiste no infinito amor do Pai pelo mundo. Mais uma vez, cumpre reconhecer que o termo “mundo” tem diversos sentidos em João. Muitas vezes, refere-se às forças opostas a Jesus, e, portanto, tem uma conotação altamente negativa. Aqui se refere à criação de Deus, o universo, com uma conotação positiva. Infelizmente, nos dias de hoje, muitos adeptos das religiões veem o mundo como algo negativo e pecaminoso, frequentemente se justificando com uma interpretação errônea de João e, assim, criando uma religião dualista, onde o “espiritual” é santo, enquanto o “material” é pecaminoso. Assim, o mundo se torna mais o domínio do demônio do que de Deus e cria-se uma religião de alienação e fuga das realidades terrestres. Essa visão equivocada está muito presente em certos movimentos neopentecostais e diversos programas de televisão e rádio. Tal visão se deve mais a certas religiões pagãs do que à mensagem do Evangelho.
A missão de Jesus não é de condenar, mas de salvar (vers. 17). Porém a própria presença de Jesus já constitui um julgamento, pois exige uma tomada de posição da parte de cada um. Para o judaísmo, e muitos escritos do Novo Testamento, o juízo deve acontecer no fim da história, mas, para João, dá-se quando alguém se encontra na presença de Jesus e conscientemente aceita ou recusa sua mensagem. O termo que a Teologia usa para essa visão é “escatologia realizada”. Na visão de um mundo dividido entre luz e trevas, há paralelos com os documentos do Mar Morto, provavelmente da seita dos essênios.
O cerne da questão é crer ou não em Jesus. Mas é importante lembrar que “crer” não é somente um exercício intelectual de aceitar que algo seja a verdade. “Crer” é assumir o projeto de vida de Jesus, é seguir em suas pegadas. É fazer que suas opções concretas sejam nossas, ou melhor, de agir como Ele agiria se estivesse entre nós hoje. Como será que Jesus agiria diante dos escândalos e crises que assolam nosso mundo? Que posição tomaria diante da acumulação de bens e terras nas mãos de poucos? O que faria diante da questão da reforma agrária ou da destruição do meio ambiente? Diante da corrupção quase endêmica e da manipulação de grande parte dos meios da comunicação de massa? O que diria diante do sofrimento de milhões de desempregos na crise atual econômico-financeira mundial, criada por gananciosos que não sofrem as consequências de sua sede sem limites de lucro? O que Ele diria diante da crise que leva dezenas de milhares de migrantes a arriscarem as suas vidas tentando escapar da miséria? “Crer” nele não é afirmar teses teológicas, mas seguir na prática Jesus de Nazaré que se colocou sempre ao lado dos excluídos e sofridos, não por serem mais “santos”, mas simplesmente por serem mais sofridos.
É bom notar que Jesus, enfatizando nesse texto a necessidade do nascimento novo espiritual (estamos ainda no discurso diante de Nicodemos), nega a importância de nascer fisicamente como membro do povo eleito. Mais uma vez, como em Caná e no Templo (2,1-11.13-22), Jesus substitui um dos pilares do judaísmo de sua época.
Estamos em plena Campanha da Fraternidade, procurando criar um novo mundo em que todos tenham acesso a uma vida digna, lutando pela luz contra as trevas! Agir “segundo a verdade” (vers. 21) significa fazer o bem. Quem luta pelo bem, pela vida, contra a exclusão, realmente “crê” em Jesus, seja qual for sua confissão religiosa, e “não é condenado” (vers. 18). Quem não faz essa opção opta então pelas trevas, mesmo que professe, de uma maneira ortodoxa, as teses da fé, mas realmente “não crê no nome do Filho Único de Deus” (vers. 18). Ninguém escapa de fazer essa opção concreta, pelo bem ou pelo mal, pela luz ou pelas trevas, pelo Reino ou pelo anti-Reino!
É pelos frutos que se conhece a árvore! A Quaresma nos convida para revermos, de uma maneira sincera, nossas opções e também nossa contribuição em favor da criação de uma sociedade justa, de vida e não da morte.
Padre Tomaz Hughes, SVD, biblista e assessor da CRB e do Cebi. Dedicou-se a cursos e retiros bíblicos em todo o Brasil. Publicou diversos artigos e o livro “Paulo de Tarso: discípulo-missionário de Jesus”. Faleceu em 15 de maio de 2017. Suas reflexões bíblicas são muito atuais.