4º Domingo da Quaresma

“Teu irmão estava morto e tornou a viver”
Lucas 15,1-3.11-32

O Evangelho de Lucas prima por sua ênfase na misericórdia de Deus. Se fosse para classificar em uma só palavra o rosto de Deus em Lucas, poderíamos, sem hesitação, assinalar “misericórdia”. Talvez nenhum capítulo salienta essa convicção tanto como o 15. A parábola aqui relatada está entre as mais conhecidas da Bíblia, geralmente chamada de “O Filho Pródigo”. Devemos ter um pouco de cuidado com esse título, pois já sugere que a figura central da parábola é o Filho Pródigo, o que não necessariamente é a interpretação mais adequada.

Para sermos fiéis ao Evangelho, precisamos interpretá-lo dentro de seu esquema teológico e literário. Para isso, temos de dar muita atenção aos primeiros três versículos. Pois nos dão o motivo pelo qual Jesus contou as três parábolas do capítulo, uma chave valiosa de interpretação. São como um gancho sobre o qual se pendura o resto do capítulo: “Todos os cobradores de impostos e pecadores se aproximavam de Jesus para escutá-lo. Mas os fariseus e os doutores da Lei criticavam a Jesus, dizendo: ‘Esse homem acolhe pecadores e come com eles!’” (versículos 1 e 2). Depois vem a chave de interpretação: “Então Jesus contou-lhes esta parábola” (vers. 3). Ou seja, Jesus contou as parábolas deste capítulo porque os chefes religiosos o criticavam por associar-se com gente de má fama. Então a chave de interpretação é a atitude dos fariseus e doutores, contestada pelo ensinamento de Jesus.

O problema de fundo não é só a prática de Jesus, mas a experiência de Deus. Para os oponentes de Jesus, Ele não pode ser de Deus, agindo assim, pois Deus não acolhe pecadores. Para Jesus, Deus é exatamente o oposto: Ele é compaixão e misericórdia, e, por isso, corre atrás dos pecadores. Quantas vezes, falando de Deus, nós cristãos demonstramos um Deus como o dos escribas e não o Deus de Jesus. Assim também a parábola nos interpela hoje.

Podemos ler esse texto a partir do filho perdido ou do pai, ou do irmão mais velho. O título tradicional implica uma leitura a partir do “pródigo” (pródigo significa “esbanjador”). Assim, ressaltaria o processo de conversão: sentir a situação perdida, decidir a pedir reconciliação, ser aceito pelo pai, reativar os relacionamentos perdidos e estragados. Sem dúvida, uma leitura válida do texto como tal, mas, diante dos primeiros dois versículos do capítulo, talvez não a interpretação primária que Lucas quisesse dar.

Outra possibilidade é de ler a história a partir do pai. Sem dúvida, também válido. Assim, o pai representa o próprio Deus, que, em primeiro lugar, respeita a liberdade de decisão do filho, não impedindo que ele seja “sujeito” de sua vida; depois não espera a volta do “pródigo”, mas corre a seu encontro, numa atitude não “digna” de um fidalgo oriental idoso, pois o pai está preocupado mais com a reconciliação do que com o prejuízo, e se alegra com a volta de quem estava morto. Mais uma vez, uma leitura mais do que aceitável.

O contexto do capítulo, contudo, à luz dos primeiros versículos, sugere uma leitura diferente: a partir do irmão mais velho. Pois Jesus conta a parábola para contestar a atitude dos fariseus e doutores da Lei, que o reprovam, porque ele acolhe os pecadores. Então, o filho mais velho é a imagem dos fariseus: “gente boa”, fiel na observância da Lei, mas cujo coração está fechado, ao ponto de ser incapaz de alegrar-se com a volta de um irmão perdido. Assim, embora observem minuciosamente todas as prescrições da Lei, a atitude deles contradiz claramente a de Deus, demonstrada pela ação do pai misericordioso. Essa diferença de gesto se resume claramente nos termos que ambos usam, referindo-se ao filho mais moço. Enquanto o filho mais velho o chama de “este teu filho” (vers. 30), o pai fala “este teu irmão” (vers. 32).

Aqui Jesus quer questionar todos nós que somos “praticantes”. Somos capazes de reconhecer nossa própria fraqueza e miséria espiritual, como fez o “pródigo”? Somos capazes de correr ao encontro de um irmão perdido, como fez o pai? Ou somos como o irmão mais velho: “gente boa”, gente de “observância”, mas gente incapaz de ter um coração de misericórdia, de alegrar-nos com a volta ao estado original, de um irmão ou uma irmã perdidos?

Podemos até dizer que este capítulo de Lucas é o coração do Evangelho. Pois Deus, o Deus de Jesus e o de Lucas, é o Deus que não se alegra com a perda de quem quer que seja, mas com a volta do pecador. É o Deus que se encarnou em Jesus de Nazaré, para salvar quem estava perdido. É o Deus da misericórdia e do perdão. Como traduzimos essa visão de Deus em nossas vidas?

Padre Tomaz Hughes, SVD, biblista e assessor da CRB e do Cebi. Dedicou-se a cursos e retiros bíblicos em todo o Brasil. Publicou diversos artigos e o livro “Paulo de Tarso: discípulo-missionário de Jesus”. Faleceu em 15 de maio de 2017. Suas reflexões bíblicas são muito atuais.

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