“Sede misericordiosos, como também o vosso Pai é misericordioso”
Lucas 6,27-38
O Evangelho na liturgia deste 7º Domingo do Tempo Comum nos traz a proposta de Jesus para uma verdadeira revolução. Mais do que ensinar, o Senhor nos convoca a quebrar as espirais do mal e reforça: o ódio definitivamente não é sua proposta, e sim o amor e o perdão. É importante recordar: a passagem se dá no contexto do famoso sermão das bem-aventuranças, proclamado no domingo anterior, o mais sublime manual de santidade.
Os ensinamentos destacados na passagem de hoje foram guardados com muito carinho pelos primeiros cristãos, vítimas principais da intolerância religiosa e política de seu tempo. Se eles tivessem agido na mesma medida de seus perseguidores, provavelmente a proposta de Jesus não teria tido a mesma força. Os cristãos seriam apenas mais um grupelho, pois dariam um contratestemunho e estariam desacreditados ao dizerem “Deus é amor” (cf. 1Jo 4,8b). Vale como nunca, porém, o chamado ao perdão e ao amor, sobretudo hoje, no cenário de polarização, julgamentos rasteiros e gratuitos, muros e intolerância em que nossa sociedade vive.
O amor e o perdão sem exigir contrapartida devem ser iniciativa dos discípulos do Senhor. Os seguidores de Cristo são aqueles, aquelas que precisam interromper em si correntes de ódio, quebrar os círculos de maldade. Não se deve esperar isso de senhores da guerra, de idólatras cultuadores da morte, do dinheiro, do ódio, da injustiça, e até daqueles cuja fé é cambaleante ou egoísta.
Quem caminha com o Senhor deve se preparar para a grande chance de o perdão e outros gestos de amor não serem caminhos de mão dupla. O afeto do próprio Deus em relação a seus filhos e filhas é assim. É concedido a nós gratuitamente, pois temos poucas condições de retribuir, mesmo numa proporção aproximada, o amor do Pai por nós. Ainda assim, Jesus nos aponta o Pai do Céu como modelo, pois espera que tenhamos o mesmo espírito uns para com os outros.
A sentença do Mestre, “Sede misericordiosos, como também o vosso Pai é misericordioso” (Lucas 6,36), presente na passagem contemplada neste domingo, é considerada uma espécie de resumo do Evangelho de Lucas. Jamais essa expressão deveria ser pronunciada distraidamente pelos batizados e batizadas. Colocá-la em prática nos exige coragem e, ao mesmo tempo, ela nos conforta. Jesus nos revela um Deus companheiro (ou seja, partilha conosco do mesmo pão) do ser humano e que não se deixa deter por regras de morte e preconceitos, mas acalenta seus filhos e filhas; e pede de nós o mesmo em favor do próximo.
Orar pelos inimigos e até poupá-los quando a vingança é oportuna (veja a primeira leitura deste domingo) são gestos dificílimos, mas podem ser portais para a perfeição cristã. Grande parte dos especialistas de vários campos da psique afirmam que atitudes nobres como o perdão, a gratidão e a solidariedade beneficiam primeiramente quem os pratica. Talvez não se espere um perdão amnésico, mas feito na concretude de nossos limites, até não se abrindo mão da legítima justiça.
Já faz algumas décadas, somos bombardeados por programas policiais pseudojornalísticos, cuja especialidade é difundir o ódio. Não apresentam propostas sérias de diminuição da violência, ignoram as reais causas do mal, tentam vincular os pobres com a delinquência, virando as costas para os grandes malfeitores. Nisso, somos levados a participar de julgamentos precipitados, feitos sob as rédeas de nossos instintos e não na serenidade. Numa sociedade livre, esses arautos do sangue têm o direito de mostrar o que querem, mas isso não significa que tenhamos a obrigação de dar audiência ou perder nosso tempo com esse tipo de conteúdo.
Passou da hora de colocar o ódio para fora de nossas casas, de nossa sociedade, questionar a respeito de quem ganha com o medo e a ira. É dever dos cristãos fomentar boas ideias de paz (a justiça restaurativa, por exemplo, cultivada pelas irmãs servas do Espírito Santo), praticar ações de socorro a sofredores de todas as classes, instaurar um mundo que seja sinal do reinado de Deus. Que o mundo volte a admirar-se ao reconhecer os discípulos e discípulas de Cristo que evangelizam pelo exemplo. “Nisto conhecerão todos que sois meus discípulos: se vos amardes uns aos outros” (João 13,35).
Alessandro Faleiro Marques
Diácono permanente na Arquidiocese de Belo Horizonte, professor, editor de textos para as irmãs missionárias servas do Espírito Santo, membro da Equipe de Espiritualidade da Província Brasil Norte das SSpS.