“… ensinava-lhes com autoridade e não como os escribas” (Mc 1,22)
No evangelho de Marcos, o começo da atividade pública de Jesus coincide com as primeiras curas. Isso nos sugere que é o início de um caminho ou itinerário pessoal que cada um(a) deve realizar. Trata-se de “ordenar” nossa própria “sinagoga” interior: carregamos pesadas imagens de Deus que herdamos ou foram reforçadas em determinados momentos de nossa vida; um Deus “cansativo” que impõe leis, normas e ritos que acabam travando o acesso à autêntica vivência humana, tecida de dignidade e verdade; um Deus “controlador” que manipula a liberdade de seus filhos(as) e condena aqueles que ousam desobedecer-lhe; um Deus que tem prazer em complicar a vida de todos com ameaças e castigos. Tais falsas imagens de Deus impedem viver nossa condição humana com mais plenitude. Deus deixa de ser um aliado para se apresentar como inimigo de tudo o que é humano. Aqui está a fonte primeira das culpas, das angústias, dos sentimentos doentios, dos remorsos… que nos impedem viver com mais alegria e sentido.
As falsas imagens de Deus são nossos próprios “demônios” que devemos desmascarar em nosso interior para poder descobrir e nos abrir a uma experiência d’Aquele que é Presença íntima, Pai-Mãe de misericórdia, Amigo incondicional que nos convida a viver de maneira criativa e livre; é Ele que ativa em nós a capacidade de amar a nós mesmos(as) tal como somos, amar os outros e amar toda a Criação.
Quantas crenças tóxicas, normas e leis religiosas estéreis, ritualismos vazios, práticas piedosas alimentadoras de culpabilidades… que as religiões, os mestres da Lei, impuseram sobre nós ao longo dos séculos, asfixiando-nos, paralisando nossas vidas e impedindo-nos buscar o bem maior! Tudo isso são os “maus espíritos” que não nos deixam perceber a Luz e a Vida escondidas no interior de cada ser humano.
Foi nesse ambiente “religiosamente carregado” que Jesus marcou sua presença original e provocativa. Ele entrou em conflito com as “autoridades religiosas” que manipulavam a imagem de Deus para controlar as vidas das pessoas. Jesus começou a curar, libertando a todos de um “deus” opressor e dominador. Suas palavras ressoavam radicalmente diferente daquelas dos mestres da Lei; e as pessoas, reunidas na sinagoga, ficavam surpresas ao escutá-lo. Jesus falava e agia com autoridade, a partir de sua experiência interior, não daquilo que ouvira; despertou a confiança e não o medo; reacendeu o amor a Deus-Abbá e não a submissão à lei que ignora o ser humano; sua presença ativou a liberdade e não a servidão; e, sobretudo, suscitou o perdão e não o rancor ou o ressentimento sempre presente. Jesus proclamou, com liberdade e valentia, um Deus pura bondade, que reconstrói com compaixão e misericórdia todos os seus filhos e filhas.
Marcos nos apresenta Jesus como o grande Mestre: seu ensinamento é novo, pois, ao mesmo tempo que ensina, liberta. É o início da missão de Jesus; e Ele começa justamente lá onde os “espíritos maus” produzem estragos no ser humano.
Diferentemente dos mestres da Lei e dos escribas, cujo ensinamento está centrado em “decorar” e conservar a Lei, o ensinamento de Jesus parte da realidade humana de sofrimento, exclusão, preconceito…
Aqui estamos numa sinagoga em dia de sábado: lugar e dia de comunhão, de encontro, de festa… No entanto, na mesma sinagoga, Jesus encontra alguém preso por “espíritos maus”, impedido de viver sua condição humana de maneira mais digna.
A missão de Jesus é a de aliviar o sofrimento humano; Ele reconstrói o ser humano ferido, fragilizado, privado de sua dignidade, sem poder dar direção à sua própria vida. Os “maus espíritos” podem ser símbolo de tudo o que desumaniza as pessoas. Podem ser os traumas, experiências de rejeição e exclusão, as feridas existenciais, falta de perspectiva frente ao futuro, o peso do legalismo e moralismo, a força de uma religião que oprime e reforça os sentimentos de culpa, as instituições que atrofiam o desejo de viver…
Enfim, tudo aquilo que prejudica as pessoas provoca miséria, tira a dignidade do homem e da mulher.
Marcos reforça que Jesus fala e atua com “autoridade”, que é diferente de ter “poder”.
Jesus não exerceu poder porque o poder nunca é mediação para a libertação do ser humano (seja poder político, religioso ou qualquer outra expressão de poder).
Jesus despoja-se do poder; Ele tem autoridade: “ensinava-lhes com autoridade e não como os escribas”.
Jesus revela sua autoridade, e este é o caminho para o serviço e a promoção da vida.
Por isso a autoridade de Jesus não tem nada a ver com o poder que se impõe ou a liderança que arrasta.
A palavra “autoridade” vem do verbo latino “augere”, que significa literalmente: aumentar, acrescentar, fazer crescer, dar vigor, robustecer, sustentar, elevar, levantar o outro, colocá-lo de pé, impulsioná-lo para frente… É a qualidade, a virtude e a força que serve para apoiar, para alentar, para ajudar as pessoas a serem elas mesmas, para fazê-las crescer, desenvolvendo suas próprias potencialidades.
“Autoridade” significa também recuperar a autoria, devolver a autonomia àquele que está impedido de optar e de fazer seu caminho. Nesse sentido, a autoridade nunca é perigosa para a pessoa, jamais é imposição ou atentado contra sua legítima autonomia ou liberdade. A autoridade é essencialmente amor.
Jesus tem “autoridade” porque o “centro” está no outro; Ele veio para servir.
Quem tem “poder”, ao contrário, o centro está em si mesmo; por isso é que toda expressão de poder é violenta, exclui, impõe-se sobre o outro…
O “ensinamento” de Jesus, no entanto, é humanizador; parte da realidade humana ferida e liberta a pessoa, colocando-a no centro da sinagoga. Para Jesus, não é a Lei que deve ocupar o centro, mas o ser humano.
As pessoas percebem n’Ele um novo Mestre, cujo ensinamento desperta o assombro e a admiração.
Jesus é tão entranhavelmente humano que nos desconcerta, a ponto de parecer estranho, extravagante e, para muitos, escandaloso. Mas, precisamente dessa maneira, Ele nos revela não só sua profunda humanidade, senão o grau de “desumanização” a que podemos submeter os outros.
Ao entrar na sinagoga, Jesus se volta para quem estava excluído e não recebia atenção; o homem “possuído” é o símbolo de todas as pessoas despersonalizadas às quais lhes foi negado o direito de falar e agir como sujeitos da própria vida, que dependem de “outros” que pensam, falam e agem por elas.
Chama-nos a atenção o fato de que Jesus, quando se aproxima dos endemoniados, não os toca como fará com outros enfermos: leprosos, cegos, paralíticos. Mantém-se à distância e ordena com sua voz para que os “maus espíritos” abandonem a pessoa escravizada. Com um taxativo “cala-te e sai dele!”, Jesus provoca a reação pessoal para nos libertar de nossos “egos diabólicos”, algo que ninguém poderá fazer por nós.
Deslocar e afastar esses “egos” e acolher com firmeza e compreensão o “eu profundo” que fará desaparecer qualquer “demônio” que pretenda intrometer-se ou manipular nossa existência. A mesma coisa faremos quando nos encontrarmos diante de pessoas que, até em nome da religião, nos prendem com as amarras do legalismo, do ritualismo e da obediência infantil: “afasta-te de quem pretende desumanizar-te ou separar-te de Deus!”.
É urgente despertar em nós um “eu original”, que seja capaz de desmontar as armadilhas desses “egos” que pululam nossa mente e nosso interior; um “eu fiel” que recebe a Luz e a força de Deus ocultas no mais profundo de todo ser humano. Livra-nos, ó Abbá, dos espíritos que nos desumanizam!
Texto bíblico: Mc 1,21-28
Na oração: proliferam os mestres, mas escasseiam os testemunhos de vida; aumentam os especialistas em leis, mas escasseia a vida; multiplicam-se os que discutem ideias, mas escasseiam aqueles que compartilham uma nova vida; cresce o número dos profissionais da religião e até da Palavra de Deus, mas são raros aqueles que, com suas vidas, sejam os melhores “exegetas” da Bíblia.
A Igreja precisa de homens e mulheres que ensinem a arte de abrir os olhos, de maravilhar-se diante da vida e interrogar-se com simplicidade pelo sentido último de tudo. Homens e mulheres que amem a vida, proclamem a vida, façam do prazer de viver a alegria da vida.
– Desça à sua sinagoga interior: quem é o “senhor” que ali atua? Os “maus espíritos” do legalismo, do moralismo, do preconceito… ou os “bons espíritos” de vida, de comunhão, de compaixão…?
Padre Adroaldo Palaoro, SJ
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana (CEI).