Os defensores da “escola sem partido” (ESP) partem de uma premissa inquestionável. A de que a doutrinação em sala é um coisa ruim. Verdade. Também é verdade que, num universo de 2 milhões de professores, existem maus profissionais (aliás, isso é verdade para qualquer ocupação). E pronto. Isso é tudo que o movimento tem.
O resto é só fragilidade. O ESP tem falhado em questões básicas. Falta uma definição clara do que se entende por doutrinação. Faltam evidências concretas de que se trata de um problema disseminado. Faltam indicações de seu tamanho e de seus efeitos.
Precisa de tudo isso? Sim. Quem quer ser levado a sério tem de tratar seus argumentos com seriedade. No caso da Educação, significa fazer pesquisas para entender melhor até questões que parecem ter uma resposta muito evidente. Vou dar um exemplo: se eu perguntar “será que a escola influencia a Educação de um aluno?”, a resposta óbvia de um educador será “claro que sim!”. Mas mesmo essa pergunta simples merece muita pesquisa. A influência da escola é maior ou menor do que a familiar, o entorno social, o nível econômico?
Com a doutrinação, deveria acontecer a mesma coisa. Mas, até o momento, não há qualquer investigação que nos permita entender o suposto problema. Seria o mínimo. Para que a questão tenha importância de fato, precisaríamos de várias pesquisas, comprovações independentes, um campo de estudo e de debate sobre o tema.
Aí está a questão. O ESP não tem intenção nem de pesquisar nem de discutir. Colocando os professores como adversários e optando pela agressividade no discurso, a destruição de Paulo Freire, alimenta ódios. As poucas reuniões com opositores terminam em confusão. Não é debate, é briga, e isso interessa ao ESP. O “fla-flu” gera memes nas redes sociais, demonização e vitimização de ambos os lados. O movimento segue sob os holofotes, e a luz saturada impede que se vejam suas enormes fragilidades.
Se estivessem de fato interessados em resolver o problema da alegada doutrinação, poderiam tomar outro caminho: o do diálogo pedagógico, aberto aos pontos de vista contrários, a examinar causas e consequências e, acima de tudo, a procurar uma solução conjunta. Quem quer entender dialoga. Quem quer impor grita!
Para o ESP, o poder dos docentes sobre os alunos é imenso. A ideia é de que o estudante estaria “submetido à autoridade do professor” e que educadores doutrinadores seriam “abusadores de crianças e adolescentes”. A imagem de jovens passivos não encontra paralelo com a realidade das escolas brasileiras. Eles são questionadores e não aceitam facilmente o que se diz. Exemplo desse protagonismo é a recente onda de ocupações, lideradas por estudantes, de escolas públicas de ensino médio.
Ao conceber crianças e jovens manipuláveis, o ESP se inspira em modelos teóricos ultrapassados há pelo menos 50 anos. Desde a década de 1960, pesquisas mostram que as pessoas, mesmo as mais jovens, escutam uma mensagem e refletem sobre o significado dela. Podem aceitá-la ou não após cruzarem o que ouvem, com influência da família, de outros professores, de amigos, da mídia, na Igreja e em outros grupos sociais dos quais participam.
Outro equívoco é atribuir uma força imensa à escola na formação do pensamento das pessoas. Estudos indicam que, na sociedade atual, a escola perdeu força diante de outros grupos e instituições. As pessoas se formam em cursos livres, debates abertos, igrejas, empresas, movimentos sociais. As visões de mundo divulgadas por essas entidades podem ser diferentes, contraditórias e até concorrentes. Aliás, quem nunca se viu soterrado com um mundo de informações contraditórias, sem saber o que pensar sobre um assunto?
O ESP se refere aos educadores brasileiros como um “exército organizado de militantes travestidos”, amparado na pesquisa de 2008, encomendada pela revista Veja ao Instituto CNT/Sensus. Na sondagem, 78% dos professores disseram que a principal função da escola é “formar cidadãos”. Para o ESP, isso equivale a “apenas e tão somente martelar ideias de esquerda na cabeça dos estudantes”.
Tal definição não se enquadra nos múltiplos significados dos termos formação e cidadania. Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), por exemplo, dizem que cidadania deve ser compreendida como “participação social e política, assim como exercício de direitos e deveres políticos, civis e sociais”. Sua adoção no dia a dia se exprime em “atitudes de solidariedade, cooperação e repúdio às injustiças, respeitando o outro e exigindo para si o mesmo respeito”. Isso se aplica tanto a um militante quanto a um diretor de uma grande empresa.
Até o momento, as medições sobre filiação a partidos políticos não confirmam a tese do ESP. O IBGE realizou dois levantamentos sobre o tema. Ambos são bem antigos, de 1988 e 1996. Na primeira, 10% dos professores da educação básica disseram ser filiados a partidos. Era um índice superior à média brasileira (4%), mas, ainda assim, muito distante de ser um exército. A julgar pela pulverização partidária, também é improvável que os professores estejam concentrados numa única legenda.
Felizmente as vozes contrárias às propostas do ESP são numerosas entre educadores, intelectuais, jornalistas, parlamentares, ativistas de movimentos sociais, cidadãos e cidadãs identificados com valores democráticos, com os direitos das populações discriminadas historicamente, com o papel central da escola na formação de sujeitos críticos, com o princípio da igualdade, da cidadania.
Irmã Luciana Rzepka, SSpS – Professora universitária, educadora, teóloga, bióloga, palestrante, pós-graduada em Ciências da Religião, mestranda em Teologia Bíblica.