A justiça restaurativa com crianças e adolescentes

Gostaria de iniciar lembrando e agradecendo a meus pais amorosos, Virgínia e Cícero, pelo melhor que me oferecem até hoje. Às irmãs Adriana, Karla e Lígia, pela longa parceria. Aos filhos João, Ana Júlia e Bruno, e ao marido Alexandre pela partilha cotidiana no incessante, turbulento e encantador movimento de cuidar e aprender. Também de destacar como inspiração, meio e fim, o que diz a irmã Martina Gonzalez, SSpS, em seu texto “A ética do cuidado”: “Sem o cuidado, não há ambiente favorável para o aflorar daquilo que nos humaniza: o sentimento profundo, a vontade de partilha e a busca do amor”.

Divido um pouco de minha experiência no Degase, que é o Departamento-Geral de Ações Socioeducativas, órgão no Rio de Janeiro responsável pela internação e acompanhamento de crianças e adolescentes em situação de conflito com a lei. Trajetória que começa com o voluntariado nas Escolas de Perdão e Reconciliação (Espere) da Fundación para la Reconciliación da Colômbia, uma organização que se dedica a disseminar a cultura de paz e a justiça restaurativa em vários países. Por meio das Espere, conheci as irmãs Nelly Boonen e Martina Gonzalez, e tive o primeiro contato com o processo circular de construção de paz. Essa é uma prática restaurativa que busca o desenvolvimento de relações saudáveis, baseado em sete crenças centrais (veja abaixo) que intensificaram um movimento profundo de transformação em minha vida pessoal e meu envolvimento social.

Seguindo na busca pelo conhecimento da justiça restaurativa, acompanhei outras formações teóricas e vivenciais no CDHEP (Centro de Direitos Humanos e Educação Popular de Campo Limpo). Junto ao aprendizado, veio a possibilidade de colaborar. Em 2019, com outras três facilitadoras, iniciamos a oficina Fundamentos de Justiça Restaurativa/Espere com jovens em cumprimento de medida socioeducativa em regime de internação. As atividades ocorreram no Centro de Socioeducação Dom Bosco, na Ilha do Governador, no Rio de Janeiro-RJ, comunidade onde vivo.

Os desafios foram imensos nesse ambiente de inúmeras ausências e violências, estruturado no entendimento de justiça pela lógica punitiva. Como desenvolver uma proposta e atividades continuadas à luz da não violência, em busca de construção de relações justas baseadas no reconhecimento das diferentes identidades, no diálogo e na corresponsabilização? A incerteza da realização do encontro a cada semana pelas necessidades da instituição, a limitação do espaço e do horário e a impermanência dos jovens foram algumas das dificuldades que determinaram o esvaziamento da oficina ao longo dos meses.

Mas, apesar da imprevisibilidade e esvaziamento, aumentou gradativamente a sensação de confiança e aproximação entre o grupo. A partir da participação voluntária nas atividades propostas e reflexões sobre valores humanos, novas perguntas puderam ser feitas. Foi um processo: passar do estranhamento e desconhecimento iniciais ao reconhecimento de si e do outro, na descoberta de novas respostas e caminhos possíveis. Um despertar de consciência para a responsabilidade pessoal e coletiva, mesmo que ainda sob a perspectiva limitadora e violenta da privação de liberdade, do sentimento de indignação, da sensação de abandono e falta de rede de apoio suficiente para atender tantas carências.

Por fim, esses encontros me fizeram experimentar, mais uma vez, a conexão humana que se estabelece e engrandece a partir do cuidado e validação de nossa identidade, da aceitação de nossas limitações e potências, do compromisso pelo bem individual e coletivo. Independentemente dos lugares que ocupamos, somos seres de afeto em busca de reconhecimento, espaço e integração. Estamos interligados e, por novos e melhores dias, mantenho a esperança.

Pressupostos centrais dos processos circulares de construção de paz:

1) dentro de cada um de nós está o verdadeiro eu: bom, sábio e poderoso;
2) o mundo está profundamente interconectado;
3) todos os seres humanos têm um profundo desejo de estarem em bons relacionamentos;
4) todos os seres humanos têm dons, cada um é necessário pelo dom que traz;
5) tudo de que precisamos para fazer mudanças positivas já está aqui;
6) seres humanos são holísticos;
7) nós precisamos de práticas para criar hábitos de viver a partir do eu verdadeiro.

(Carolyn Boyes-Watson e Kay Pranis. No coração da esperança: guia de prática processos circulares: o uso de círculos de construção de paz para desenvolver inteligência emocional e construir relacionamentos saudáveis.)

Vanessa Bispo Gadelha Valente, voluntária do Centro de Valorização da Vida e das Escolas de Perdão e Reconciliação, Rio de Janeiro-RJ.

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