“Vós ouvistes o que foi dito: ‘olho por olho e dente por dente!’ Eu, porém, vos digo…” (Mt 5,38)
Não é preciso ser um especialista em análise da realidade para perceber e sentir que está se difundindo na nossa sociedade uma linguagem que deixa transparecer o crescimento da agressividade e do ódio. Cada vez, com mais frequência, ouvimos e lemos nas “redes sociais” insultos agressivos, intolerantes, preconceituosos, proferidos só para humilhar, desprezar e ferir a dignidade do outro. São “palavras ácidas” nascidas da rejeição, do ressentimento, da vingança…; palavras proferidas sem amor e sem respeito, que envenenam a convivência e causam profundas rupturas nas relações interpessoais; palavras que emergem de interioridades mesquinhas, vazias, baixas… As conversações, nos espaços públicos e privados, estão sendo tecidas de expressões injustas que espalham condenações e semeiam suspeitas.
Assim, vai sendo gestado, lenta, mas implacavelmente, um espírito de combate, de linchamento, uma guerra de mentiras, um fogo cruzado carregado de desprezos, revanches e incompreensões frente àqueles que pensam diferente, creem diferente, amam diferente.
A virtude da mansidão está cada vez mais distante das esferas públicas e das relações pessoais.
E isso não é um fato que acontece só na convivência social. É também um grave problema no interior da Igreja. São divisões, conflitos e enfrentamentos de “cristãos em guerra contra outros cristãos”. Trata-se de uma situação tão contrária ao Evangelho que o Papa Francisco sentiu a necessidade de nos dirigir um apelo urgente: “não à guerra entre nós!”
Assim fala o Papa: “Dói-me comprovar como em algumas comunidades cristãs consentimos diversas formas de ódios, calúnias, difamações, vinganças, ciúmes, desejos de impor as próprias ideias à custa que qualquer coisa, e até perseguições que parecem uma implacável caça às bruxas. A quem vamos evangelizar com esses comportamentos?”
Diante desse contexto, onde imperam a prepotência, a agressividade e os radicalismos, ressoa estranho as palavras de Jesus: “Amai os vossos inimigos e orai por aqueles que vos perseguem”. Parece um grito ingênuo, proferido no deserto da desumanização.
No entanto, talvez sejam as palavras que mais precisamos escutar nestes momentos em que, submersos na podridão do ódio e da intolerância, não sabemos o que fazer de concreto para ir arrancando a violência do nosso mundo e do nosso coração.
E é precisamente aqui onde o evangelho de Jesus tem muito a iluminar, não para oferecer técnicas para resolver conflitos, mas sim para nos ajudar a descobrir com que atitudes devemos abordá-los.
Há uma convicção profunda em Jesus: não se pode vencer o mal apelando à espiral do ódio e da violência.
Já dizia Martin Luther King que “o último defeito da violência é que gera uma espiral descendente que destrói tudo o que engendra. Em vez de diminuir o mal, aumenta-o”.
Sempre há tentativas de justificar, em algumas circunstâncias, a legitimidade da violência. No entanto, Jesus nos convida a trabalhar e lutar sempre para que ela não seja nunca justificada. Por isso, é decisivo buscar sempre caminhos que nos conduzam à convivência fraterna e não ao fratricídio.
“Amar os inimigos” não significa tolerar as injustiças e retirar-se comodamente da luta contra o mal. O que Jesus viu com claridade é que não se luta contra o mal quando se destrói as pessoas. É preciso combater o mal, mas sem buscar a destruição do adversário.
A dificuldade maior para compreender o “amor aos inimigos” está no fato de que confundimos “amor” com sentimento. O amor evangélico (ágape) não é instinto, nem sentimento. Portanto, não podemos esperar que seja algo espontâneo. O verdadeiro amor, seja ao inimigo ou a um filho, não é o instinto que nasce de nosso ser biológico. O amor ágape é algo muito mais profundo e humano. Nem sequer nossa razão pode nos conduzir a este nível.
Amar o inimigo não é questão de voluntarismo, mas atitude de vida. Um exemplo: no mar sempre haverá ondas, de maior ou menor tamanho, mas sempre estarão aí. Ao chegar no litoral, a mesma onda pode encontrar-se com a rocha ou encontrar-se com a areia. Contra a rocha, quebra-se em mil pedaços; contra a areia, ela se desfaz suavemente.
Os inimigos sempre vão aparecer em nossas vidas; mas a maneira de encontrar com eles dependerá de cada um de nós. Se somos rocha, o encontro se manifestará com estrondo e todos sofrerão danos. Se somos praia, todo seu potencial de violência ficará anulado e chegará até nós com a maior suavidade.
Um detalhe, a rocha e a areia são constituídas da mesma matéria, só muda seu aspecto exterior.
“Assim seremos filhos de nosso Pai…” Um Deus que ama a todos de maneira igual, porque seu amor não é a resposta às atitudes ou às ações, mas é anterior a toda ação humana. Deus nos ama não porque somos bons, mas porque Ele é bom e ama infinitamente a todos. É da essência de Deus: “Deus é amor” permanen-temente. Da mesma maneira, o amor que temos para com os outros não tem sua origem nem é condicionado pelo que eles são ou fazem, mas pela qualidade de nosso próprio ser. O amor não é resposta às ações de alguém; sua origem está em cada um de nós, pois, na essência, fomos criados à imagem e semelhança do Deus que é amor. “Amar os inimigos”, portanto, é entrar no fluxo do amor que brota do coração de Deus e faz morada no nosso coração.
Por isso, hoje, mais do que nunca, é preciso ativar toda nossa reserva de amor e bondade em favor de uma resistência firme, mas lúcida, para aplacar o rufar dos tambores do ódio; não entremos na barca dos furiosos pois a cólera nos fará naufragar a todos! Nascemos para voar; deixemos voar a ternura e despertemos a mansidão que se encontram na essência do nosso ser profundo. São atributos humanos que tornam a nossa vida mais leve, flexível, aberta, acolhedora… E não nos deixemos envolver por aqueles que, carregados de ódio ou preconceito, não querem alçar o vôo. Quem sabe, algum dia consigamos que ninguém mais decida permanecer no deserto da desumanização.
Sem dúvida, a “mansidão” e a “ternura” definem radicalmente o sentir e o atuar de todo(a) seguidor(a) de Jesus. A maior contradição é alguém dizer que segue Aquele que é “manso e humilde de coração” e, ao mesmo tempo, revela-se como presença agressiva e conflituosa, expele ódio por todos os poros, faz-se mediação para a transmissão das piores mentiras.
A mansidão e a ternura são virtudes irmãs, andam sempre de mãos dadas. Quem cultiva a mansidão mais facilmente se torna terno com todos. É sentimento de suave comoção, de afeto doce e delicado, de atenção amorosa, de profunda e autêntica humanidade, no sentido de constante abertura aos outros, de consideração positiva, de disponibilidade e ajuda.
O Papa Francisco usa, com frequência, uma expressão carregada de intensidade: “revolução da ternura”.
A “revolução da ternura” nos convida a acompanhar, curar e acolher, a partir de nossa realidade, aqueles que nos rodeiam, a viver investindo nossos melhores recursos em favor da quebra da cadeia de violência.
Hoje, essa proposta simples, mas de profunda marca evangélica, responde à desumanização que estamos vivendo. Essa revolução da ternura nos convida a sair de nós mesmos, a colocar nossa vida a serviço do irmão, a entrar no fluxo do Amor de Deus, fazendo-o chegar a tantos que dele necessitam, através de nossas palavras mansas, de nossa presença cheia de ternura; assim vivendo, seremos pura transpa-rência do Coração manso e humilde de Jesus.
Texto bíblico: Mt 5,38-48
Na oração: A suavidade é o significado mais relevante e mais perceptível da mansidão. Mas a mansidão não é apenas suavidade; ela é plena de força, de iniciativa, de criatividade…
– Você vive num ambiente onde predomina mansidão, tolerância, compreensão…? Ou, ao contrário, um am-biente carregado de suspeitas, julgamentos, ódios…?
– Como despertar a bem-aventurança da mansidão, presente em seu interior?
Padre Adroaldo Palaoro, SJ
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana (CEI).