Consideramos a vida humana como sagrada! Tomamos a saúde por garantido! Esquecemos que a vitalidade é uma dádiva dependente do equilíbrio de nosso corpo e das relações que estabelecemos com o ambiente em que vivemos; do ambiente natural, construído e cultural. Desdenhamos de que somos parte do ecossistema e traçamos fronteiras, separando, artificialmente, nossas cidades e organizações daquilo que chamamos de natureza; como se fosse possível.
Vida saudável depende de alimentos e água limpa dados pela natureza. Nosso corpo é constituído de água, e a origem da vida foi tecida nela. A água limpa depende de santuários como a floresta ou repositórios no ventre da terra. Por que razão ainda não elevamos a vida da terra, de outros seres animais-vegetais e a água ao mesmo status de sacralidade que nossa vida tem para a cultura? Por que continuamos nos relacionando com a água, a terra e o ar como se estivessem à nossa disposição, sem nenhum valor ou direito próprio? Por que contaminamos a água como se fosse um bem gratuito, infinitamente resistente aos processos poluentes aos quais a submetemos em nossas muitas atividades domiciliares e industriais? Por que desperdiçamos alimentos quando a insegurança alimentar ainda está evidente no dia a dia e nas estatísticas? Por que produzimos resíduos como se fosse o lado da moeda inevitável de nosso estilo de vida?
Muitas vezes partimos da premissa de que nossas ações individuais são insignificantes e não afetam o planeta, a vida ou a saúde. Mas, quando consideramos estilos de vida em escala (o condomínio, o bairro, o complexo industrial, a cidade, o estado, o país, o globo), as implicações de nossos comportamentos (como indivíduos, cidadãos e organizações) no adoecimento da água, dos sistemas naturais, da terra e da vida, incluindo a nossa, revelam-se inegáveis.
Em termos culturais e de mentalidade, assumimos a condição de seres supremos na pirâmide da vida; com a ação humana ampliada por próteses tecnológicas, aclamamos nossa espécie como “homo-deus” e orientamos o horizonte de futuro para a colonização de outros planetas, a infinitude da vida humana e a “algoritmização” de processos insustentáveis em termos sociais e ambientais. Recusamos o reconhecimento de que o tempo que nos foi dado aqui na terra, assim como a saúde, é presente.
Não assumimos que, no fluxo da vida, estamos todos de passagem, somos elo do vir a ser e temos arbítrio sobre nosso legado. Negamos para com as outras formas de vida e a própria terra uma relação de horizontalidade. Trata-se de uma crise ecológica decorrente de nossa inabilidade de habitar o planeta sem o consumir, cuja superação está condicionada ao reconhecimento das relações de reciprocidade. Falar em estilos de vida saudáveis e sustentáveis requer assumir que a vida, a água, os alimentos, a floresta, o clima estão interligados em um delicado equilíbrio que requer a ética do cuidado tão defendida por Leonardo Boff.
Para saber mais
BOFF, Leonardo. O cuidado necessário. Petrópolis: Vozes, 2012.
EVERLING, M.; CASTANHEIRA, N. Da condição humana e do princípio responsabilidade ao design orientado para condições de preservação de vida na Terra. In: CASTANHEIRA, N. et al. Questões ecológicas em perspectiva interdisciplinar. (v. 2). Porto Alegre: Fundação Fênix, 2022. p. 95-110.
HARARI, Y. Sapiens: Homo deus: uma breve história do amanhã. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
JONAS, H. O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2006.
SUMAÚMA. Direitos da Natureza. Disponível em https://sumauma.com/category/direitos-da-natureza/
Marli Teresinha Everling
Professora dos cursos de Graduação e Pós-graduação em Design da Universidade da Região de Joinville (Univille); coordenadora do Projeto Ethos – Design e relações de uso em contexto de crise ecológica; colaboradora do Instituto Caranguejo de Educação Ambiental (caranguejo.org.br); colaboradora do blog SSpS Brasil para temas ambientais (https://blog.ssps.org.br/posts); colaboradora das redes sociais do design para temas ambientais – Instagram @designuniville