A situação prisional do Brasil é uma catástrofe. Em julho de 2019, a população prisional era de 773.151 pessoas privadas de liberdade. Dessas, 33% não tinham qualquer condenação. A população carcerária triplicou nos últimos 20 anos. De acordo com o Departamento Penitenciário Nacional (Depen), o Estado de São Paulo ocupa a primeira colocação, com 233.755 presos; seguido por Minas Gerais, com 78.003 detentos; Rio de Janeiro, com 59.966; Rio Grande do Sul, com 40.687; e Pernambuco, com 33.555.
Diante desse cenário, o Centro de Direitos Humanos e Educação Popular (CDHEP) estabeleceu uma parceria com o Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas (PNUD) e o Conselho Nacional da Justiça (CNJ) para implantar ações de justiça restaurativa em dez tribunais do Brasil.
Esse avanço é fruto de 15 anos de trabalho e busca inquietante, de uma pesquisa de doutorado e de muitas formações oferecidas dentro e fora do Brasil com os mais diversos públicos. Pouco a pouco, fui me capacitando, ganhando experiências e enxergando lugares de atuação.
Desde 2013, outras duas irmãs servas do Espírito Santo (SSpS) de minha comunidade, Martina Gonzalez e Helena Christo, dão formação em fundamentos de justiça restaurativa em presídios de São Paulo, em conjunto com a Pastoral Carcerária. Inspirada na Escola de Perdão e Reconciliação, esse curso trabalha as dimensões cognitivas e emocionais para reconhecer e lidar com sentimentos e necessidades que afetam as relações, aprofundando o perdão como um valor. Ao introduzir a justiça restaurativa, desconstrói e reconstrói conceitos e práticas já enraizadas e propõe um modelo de justiça que conecta e restaura pessoas e relações, possibilitando a reconciliação.
O trabalho no presídio tem um aspecto pastoral muito importante, e agradeço minhas irmãs por assumirem essa missão. Cada curso tem dez encontros semanais de três horas de duração, e ouvimos testemunhos edificantes dos presos. Mas me inquietava que o resultado não tinha incidência na política pública.
Com o número sempre crescente de encarcerados e as condições nos presídios cada vez mais desumanas, sempre questionava a comunidade: como a justiça restaurativa poderia evitar o encarceramento, a desumanização e a retroalimentação da violência causada pelas respostas punitivas do Estado?
Em julho de 2017, participei de uma formação com a juíza Catarina Lima, de Planaltina-DF. Até então, ela era a única juíza criminal que levava em consideração os procedimentos restaurativos para incidir sobre a sentença. Ela estava tão aflita quanto eu em relação à bomba-relógio que o encarceramento em massa está construindo no Brasil.
Depois de várias conversas buscando ver como aplicar a justiça restaurativa para ter reflexos na sentença, ela me convidou para trabalhar na Vara Criminal que ela coordena. Aceitei o desafio e a oportunidade, e, ao longo de um ano e meio, uma vez por mês, ia alguns dias a Brasília para os atendimentos.
Com formação em Ciências Sociais, tive de aprender muito da área do Direito e descobrir as possibilidades da justiça restaurativa na área criminal. No CDHEP, conseguimos um financiamento para replicar e ampliar os aprendizados em uma Vara Criminal de São Paulo. Contratamos um criminalista e, após quase um ano, com outras duas juízas, iniciamos os atendimentos de casos de crimes graves. No momento, estamos com dez casos criminais e esperamos poder oferecer um bom desfecho para as vítimas, para os ofensores e para a sociedade como um todo.
Paralelamente a essas ações, continuaram as reflexões sobre a possibilidade de ampliar a justiça restaurativa na Justiça Criminal. Com mais experiência e apoio de criminalistas, conseguimos oferecer esse novo projeto tendo em vista a diminuição do encarceramento.
A parceria com o CNJ pretende contribuir para a implantação, estruturação e fortalecimento de órgãos e serviços de justiça restaurativa nos Tribunais de Justiça, na Rede de Garantia de Direitos e na sociedade civil para atuarem no Sistema de Justiça Criminal e Penitenciário e no Sistema de Justiça Juvenil e Socioeducativo em dez Estados da Federação.
O projeto já aprovado se enquadra no Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) 16 da ONU, que almeja o acesso à Justiça para todos e a construção de instituições eficazes, responsáveis e inclusivas em todos os níveis.
A mim cabe coordenar a aplicação desse projeto nos dez Estados participantes. Com exceção de São Paulo, são do Norte e Nordeste, os mais pobres e com instituições públicas mais deficientes. Minha sensação é de fecharmos um ciclo de trabalho, indo a outro nível de organização. A paciência, as articulações e as formações de muitos anos produziram uma semente a ser espalhada pelo Brasil. A terra foi preparada. Agora é hora de semear. Um belo desafio e uma ótima oportunidade.
Irmã Petronella Maria Boonen (Nelly) é cofundadora da linha de Perdão e Justiça Restaurativa do CDHEP e doutora e mestra em Sociologia da Educação pela USP.
O projeto já aprovado: link para https://www.cnj.jus.br/justica-restaurativa-chegara-a-10-tribunais-do-pais/