“A única coisa perfeita do ser humano é a sua imperfeição”(Isaac Rubin)

“O publicano voltou para sua casa justificado” (Lc 18,14)

Se algo fica patente no Evangelho deste domingo é a denúncia, por parte de Jesus, do perfeccionismo farisaico. Fariseus de ontem e de hoje. O tão proclamado ideal de perfeição chega a enraizar-se tão profundamente na vivência religiosa que acaba produzindo consequências desastrosas para as pessoas. A busca de perfeição torna-as rígidas, legalistas e intolerantes; seu deus é pura projeção de sua rigidez e moralismo: um “deus desumano” que cobra até o último centavo e ameaça sempre com o “inferno”.

A Bíblia nunca nos apresenta, como modelos de fé, pessoas perfeitas e sem falhas, mas sim, justamente pessoas marcadas pela fragilidade e fracasso e que colocaram sua esperança unicamente em Deus, ao invocarem-no do fundo do abismo.

Jesus, através de uma simples parábola, desmascara uma religião centrada no moralismo e no julgamento dos outros. Nesta parábola, Jesus contrapõe os dois extremos da sociedade judaica daquele tempo: o fariseu, expressão máxima da piedade e da moralidade, e o publicano, que por sua profissão, era a expressão máxima do pecador, distante dos ideais religiosos.

Ambos vão ao templo e, na oração, cada um deles revela sua vida e seus sentimentos.

De fato, é na oração que o ser humano exprime aquilo que é mais íntimo e mostra como ele se relaciona com os outros e com Deus. O risco do farisaísmo é subir o pedestal da perfeição e do legalismo, distanciando-se do amor e da misericórdia de Deus; com isso, cai no orgulho religioso e é incapaz de converter-se a Deus no seu íntimo.

Na prática, a oração do fariseu significa submeter Deus a si mesmo, cobrando o prêmio pelas boas ações. Agradece porque é sem vícios, não porque se sinta amado por Deus.

Seu louvor e agradecimento é apenas um pretexto para louvar a si próprio, inflar o próprio ego.

Ele tem méritos e nada deve a Deus; ao contrário, Deus é quem lhe deve: a enumeração de suas boas obras implica a pretensão de uma recompensa; ele acha que pode impressionar Deus com suas qualidades aparentes, seus sacrifícios e boas obras puramente formais, sem extirpar de seu coração o orgulho e o desprezo pelos outros.

A salvação que esperamos não é fruto de nosso trabalho e penitência, de nossa prática legal e de nossas virtudes. Ela é puro dom de Deus, divino presente de seu coração de Pai.

Só nos resta acolhê-la em atitude de humilde gratidão.

Na sua auto-suficiência e com sua oração um tanto blasfema, o fariseu está aí, de pé, para dar espetáculo, aguardando o aplauso da plateia. O publicano, no entanto, nos revela que basta redescobrir o caminho da humildade (do húmus), bem no fundo de nós mesmos: este é o lugar da oração.

Esta humildade é a porta de abertura para sair de um coração fechado em si mesmo, de um coração auto-suficiente e perfeccionista, onde tudo gira em torno do próprio eu, onde não há espaço para o Outro e os outros, onde a Misericórdia não tem como agir para poder transformar a pessoa.

A palavra latina humilitas está relacionada com húmus, com terra.

Ser humano é reconhecer-se terroso, argiloso; é por essa razão que somos todos irmãos já que somos todos feitos de argila. Somos argilae devemos cuidá-la, cultivá-la e fornecer-lhe as condições para mantê-la aberta ao Transcendente. A humildade é a própria essência do ser humano; ela é a própria condição para ser aquilo que se é: para ser humano. Essa é a verdade de nossa humanidade.

Somente o humilde, que está preparado para abraçar seu húmus, sua humanidade, sua fragilidade, sua sombra, experimentará o Deus verdadeiro.

Só a aceitação de sua verdade completa conduzi-lo-á no caminho da libertação. E a verdade é que em cada um jazem unidas a luz e a sombra. Em cada santo dorme um pecador, e não reconhecer isso conduz ao farisaísmo e ao moralismo; mas em todo pecador dorme também um santo, e não o perceber supõe um empobrecimento humano, desesperança e vazio.

Numa espiritualidade perfeccionista, o ideal é o ser humano puro, sem defeitos nem fraquezas. Mas isso leva a um rigorismo moral, contra quem se dirige a parábola do publicano e do fariseu.

Aqui está a aparente contradição da espiritualidade cristã: nós “subimos” para Deus precisamente quando descemos à nossa realidade humana.

Nesse sentido, o caminho para Deus não é visto como uma estrada de mão única que nos leva sempre para o alto, em direção às virtudes e à perfeição. Pelo contrário, o caminho para Deus passa pela limitação e fragilidade, pelos erros e desvios enganosos, pelo fracasso e pela decepção consigo mesmo.

Quem se identifica com ideais muito elevados, quem se exalta a si mesmo na busca da perfeição, mais cedo ou mais tarde terá de confrontar-se com suas sombras, será forçado a tomar consciência de sua condição humana e terrena, de seu húmus.

Quem desce até sua própria realidade, até os abismos do inconsciente, até a escuridão de suas sombras, até a impotência de seus próprios sonhos, quem mergulha em sua condição humana e terrena e se reconcilia com ela, este sim, está subindo para Deus, faz a experiência do encontro com o Deus verdadeiro.

Na parábola acima mencionada, os dois personagens correspondem a dois aspectos de nossa própria pessoa. Vive em cada um de nós um eu prepotente, que se considera justo e rejeita todo o imperfeito; é o eu rígido, fruto da super-exigência, que se identifica com a imagem idealizada de nós mesmos e se alimenta do orgulho. Mas junto a ele, e com frequência sufocado, vive outro eu que teve de esconder-se porque não se sentiu reconhecido em sua verdade nem aceito em seus limites.

A parábola revela-nos que a reconciliação virá por esse lado. Precisamos abraçar toda a nossa frágil realidade, em toda a sua verdade e, a partir dessa humildade, começar a viver em gratuidade e em gratidão.

A parábola nos fala da necessidade de acolher o desprezível que descobrimos em nós, de receber amorosamente em nossos braços o pobre publicano interior, de contemplá-lo com olhos compassivos e alimentá-lo. Desse modo, iremos reduzindo nosso abismo interior e avançaremos para a totalidade a que Deus nos chama em Jesus.

Será justamente a partir da consciência de nossa pobreza e de nossa negatividade que poderemos nos abrir à experiência da gratuidade; é quando nos encontramos sem nada que sentimos mais necessidade de nos abrir para cumular-nos dos dons da graça divina.

Segundo a espiritualidade que parte do chão da vida, ali pode estar a maior de todas as chances, ali pode estar também nosso tesouro. É ali que entramos em contato com nossa verdadeira essência. E é ali que alguma coisa poderá ganhar vida e desabrochar.

Dorotéo de Gaza disse certa vez: Teu entulho seja teu pedagogo.

Onde nós caímos, onde nos afastamos de Deus, é que aprendemos uma lição, a lição que a busca da perfeição não é capaz de nos ensinar. Justamente onde nos deparamos com nossas fraquezas pessoais é que nos tornamos abertos para Deus. Na nossa fraqueza somos capazes de reconhecer a Vontade que Deus tem para conosco e o que Ele poderá fazer de nós quando Ele realizar totalmente sua graça em nós.

Deus nos educa justamente também através de nossos fracassos, através de nossos escombros.

Descer à nossa realidade, significa considerar a experiência da impotência e do fracasso como o lugar da verdadeira oração e como chance de chegarmos a uma nova relação pessoal com Deus.

É decisiva a reconciliação com todas as paixões, com todas as feridas, com todas as fragilidades…, pois todas elas podem levar-nos a Deus. Não é preciso outra coisa senão descer até onde elas se encontram e interrogar o que elas têm a nos dizer. Este é o caminho da espiritualidade que brota do húmus: descobrir novas possibilidades de vida e de encontro com Deus.

O Amor de Deus se mistura com nosso pobre amor, de modo que os dois se tornam um: eis o despertar do coração! Eis a verdadeira espiritualidade!  

Para MeditarLc 18,9-14

Quando nos vemos demasiadamente organizados, demasiadamente perfeitos, exigentes, rígidos, ansiosos, agressivos…, agiríamos bem perguntando-nos o que o nosso ego perfeccionista está escondendo.

Quais são as marcas da perfeição impregnadas no seu interior pela formação familiar, pela religião…

Padre Adroaldo Palaoro, SJ
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana (CEI).

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