“O tempo já se completou, e o Reino de Deus está próximo” (Mc 1,15)
O evangelho deste domingo é um texto de transição, pois fecha o prólogo (Mc 1,1-13) e abre a narração propriamente dita do evangelho. João Batista continua sendo pessoa de referência e servirá de contraponto histórico e teológico da história posterior. A prisão dele revela o ambiente de oposição e perseguição onde Jesus atuará, anunciando a Boa Notícia.
“Jesus foi para a Galileia”: o espaço geográfico (e teológico) de João Batista era o deserto com o rio Jordão. O espaço de Jesus, no entanto, é a Galileia. Ele não se retira ao lugar da prova nem se instala à margem da Terra Prometida; também não busca um lugar de missão junto aos átrios de Jerusalém, santuário nacional. Jesus se encontra vinculado à terra e às pessoas simples da Galileia, junto a um mar simbolicamente aberto às nações vizinhas. Ele se faz “margem” e começa seu ministério junto às margens.
O evangelista Marcos quer desligar a pregação de Jesus de toda conotação oficial: longe das autoridades religiosas, longe do templo e de tudo o que isso implicava. Galileia era região fronteiriça, terra da exclusão e da violência, habitada pelos mais pobres e sofredores.
Se algo chama a atenção em Jesus é sua paixão por um projeto de sentido que Ele denominou como Reino de Deus. Toda sua pessoa está mobilizada e polarizada por esse sonho, por essa utopia carregada de esperança ativa. Jesus é consciente de que com Ele começa uma história nova. A esperança se faz realidade. A consumação do mundo está começando.
Mas a Galileia em si mesma não basta. A novidade do Evangelho se fundamenta na mensagem de Jesus: “cumpriu-se o tempo e chegou o reino de Deus; convertei-vos e crede no evangelho”. Essa é a afirmação-chave, que consta de duas frases paralelas duplas, cada uma com duas partes, unidas por um “e”. Como é usual em Marcos, a segunda serve para precisar o sentido da primeira: cumpriu-se o tempo “e” chega o reino (o reino define e dá sentido ao tempo); convertei-vos “e” crede no evangelho (a fé dá sentido à conversão).
O progresso temático é claro: passamos do Batista (deserto/rio) à Galileia, descobrindo ali a mensagem de Jesus, aberta a todas as pessoas. Ele não se fecha nas casas, sussurrando ao ouvido um segredo de iniciados; não se instala numa escola, oferecendo cursos longos de ensinamento especializado; não oferece sua palavra à beira do templo sagrado (aos puros) nem à margem do rio/deserto (aos especialistas da penitência). Dirige-se à Galileia, oferecendo seu evangelho a todos; faz isso com claridade (para que seja bem entendido), em voz alta (que o escutem), como arauto ou mensageiro de boas notícias que devem se estender pelos povoados. Por isso, anúncio e chamado estão profundamente unidos; com seu anúncio, Jesus desperta o que há de mais humano em cada um e o chama a entrar no fluxo da Sua nobre missão: “farei de vós pescadores do humano”.
Atento ao “tempo oportuno” Jesus pôs-se a proclamar a “boa notícia” da parte de Deus. Ele não espera, como João, que as pessoas venham ao seu encontro. Faz-se peregrino e dirige-se às pessoas, sobretudo aquelas que estavam à margem, excluídas e sem esperança. Cumpriu-se o “kairós”, ou seja, o tempo oportuno, carregado de sentido e de Presença; um tempo que se abre às surpresas de Deus e que mobiliza cada pessoa a viver de uma maneira diferenciada, rompendo com a vida rotineira e repetitiva.
A fé do povo de Israel sempre se deixou guiar pelo tempo de Deus, por suas intervenções salvíficas.
Esta fé é a que o conduz a uma visão histórica do tempo, enquanto se trata do “hoje eterno de Deus” apontando para a Terra Prometida, lugar do destino do povo. Descobre-se o tempo como momento no qual acontece algo qualitativamente novo e não explicável a partir do ritmo cíclico da natureza.
A atividade profética vai significar um passo decisivo na concepção do tempo dentro de Israel.
Os profetas anunciam um novo ato salvífico de Deus que está por chegar e que será decisivo para Israel.
A partir desse momento, o povo vai viver o tempo como expectativa e espera ansiosa de um momento definitivo em sua existência: a realização da Promessa.
E Jesus inicia sua missão pública entrando no fluxo dessa expectativa do povo.
O Filho do Homem vive na espera paciente de seu momento. Sua sabedoria consiste em saber aguardar que o tempo chega à sua colheita, sem cair na tentação de forçar sua maturação.
Nessa perspectiva, não podemos viver o tempo como se este fosse algo meramente plano e indiferente. O Senhor do tempo e da História se faz presente em nossos corações, através do seu Espírito de Amor. E o tempo se faz, simultaneamente, princípio e fim, Alfa e Ômega.
Cada dia e cada momento tem seu matiz, sua cor e sua novidade. Não é o mesmo a primavera que o inverno, ou o sábado que a segunda-feira.
Para Jesus, o tempo que se recebe em graça e que se converte em missão, é que dá sentido à sua vida neste mundo. Ele acolhe de seu Pai o “dom do tempo” e o encarna na história humana de maneira iluminadora. Receber este “dom do tempo” requer uma disposição nova por parte do ser humano.
O sentido do tempo é o grande desafio na condução da nossa vida.
Inconscientemente, muitas vezes resistimos a fazer uso adequado desse bem precioso e insubstituível; outras vezes, usamos o tempo de forma mais contra do que a favor de nossos desejos e objetivos.
Ao irromper no tempo histórico como presença viva de Deus-Amor, Jesus nos convoca a nada mais esperar: “O tempo já se completou”. O apelo de Jesus deve estar encaminhado a descobrir o que estamos fazendo com nosso tempo. Podemos estar desperdiçando ou perdendo aquilo que nos foi dado para vivermos com intensidade e inspiração. Os anos vão se passando e com eles as oportunidades de dar verdadeiro sentido à nossa vida.
Só quando a pessoa recupera o sentido do transcurso do tempo, estará preparada para bem viver.
Afinal, “não temos tempo, somos tempo”. Nós não temos o tempo; o tempo é o que somos, pois quando não somos, já não há tempo que valha a pena; o tempo torna-se “normótico”, pesado, insuportável…
“Somos tempo”, e por maiores que sejam os avanços tecnológicos e de pensamento, isso não mudará. É o mais valioso que nós temos; é o maior presente que podemos fazer uns aos outros: nosso tempo.
O que define nossa cultura pós-moderna é o consumo do tempo. Se antes o ter deslocou o ser, agora o fazer está deslocando o ter como prioridade. Acumular ações, ter agenda cheia, ativismo… é o que está de moda. Estão sendo desenvolvidas as estratégias mais sofisticadas para que qualquer pessoa busque ocupar o tempo. Até o descanso foi despojado de sua gratuidade: os fins de semana e os tempos de férias são preenchidos com uma carga excessiva de atividade. “Os domingos estão precisando de feriados” (Bonder).
O tempo está tão medido e amordaçado que não há espaço para a duração, a gratuidade, a criatividade…
O pior, no entanto, não é ter feito do ativismo o “modus vivendi” por excelência, mas é o fato de a pessoa estar perdendo a noção da temporalidade, ou seja, a perda do sentido da história.
O ritmo cronológico da vida acaba desembocando na tirania da imediatez. O “carpe diem” está contribuindo para que o dom do tempo seja objeto de consumo e acabe, portanto, consumido, ou seja, gasto e extinto. Espera-se tudo do presente, e os dias se reduzem a uma soma de instantes sucessivos sem especial conexão. Ao dia de hoje não é necessário saber o que fizemos ontem e nem o que faremos amanhã.
Vivemos numa cultura onde preenchemos nosso tempo de “afazeres” para não nos deixarmos “fazer” pelo Espírito de Deus. “Perdemos” nosso tempo quando não nos conscientizamos, por alienação ou escapismo, de toda a densidade do momento como possibilidade e oportunidade de Vida.
Texto bíblico: Mc 1,14-20
Na oração: o tempo da oração é o tempo de deixar-se afetar, cativar, entusiasmar… pela pessoa, pela missão, pelo projeto de Jesus; é o tempo do amadurecimento e da concretização das opções e dos compromissos para segui-Lo pelos caminhos que Ele percorreu.
Mais que “preencher” o tempo, a atitude espiritualmente cristã de conversão é deixar-se “preencher” pela bondade de Deus no tempo; agora é o tempo de deixar-se conduzir, de encontrar-se…
Fé é criar, é deixar passar por nós a energia criadora-libertadora do Deus-providente, Senhor dos “tempos novos”.
Viver o tempo como oportunidade é arriscar-nos a ver o que cremos, a perceber a presença d’Aquele que se “faz tempo” e dá sentido pleno ao nosso tempo. É no tempo que expressamos o louvor, a ação de graças…
Padre Adroaldo Palaoro, SJ
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana (CEI).