Abrir-se à vida

“Imediatamente seus ouvidos se abriram, sua língua se soltou e ele começou a falar” (Mc 7,33)

O relato do evangelho deste domingo é como se fosse um “ritual ou sacramento de iniciação à palavra”. Para compreender a parte anterior do evangelho de Marcos e para acompanhar Jesus no seu caminho posterior, é necessário abrir os ouvidos e a língua, aprendendo a escutar e a falar.

Para aquela cultura do tempo de Jesus, o fato de uma pessoa ser surda, muda ou cega não era simplesmente uma questão de saúde, mas um problema religioso. Essa carência física era sinal de que Deus a tinha abandonada. Se Deus a abandonara, a instituição religiosa estava obrigada a fazer o mesmo. Era, portanto, marginalizada pela religião; e isto era a maior desgraça que podia acontecer a uma pessoa. 

Jesus, com sua atitude e seus gestos terapêuticos, revela que Deus está mais próximo dos marginalizados, daqueles que sofrem. Ao curar, Ele os arranca de sua marginalização religiosa, demonstrando que Deus não marginaliza ninguém e que a religião não atua em seu nome.

O evangelho de João começa dizendo que “no princípio era a Palavra”, e que a Palavra era Deus, para depois acrescentar: “… e a palavra se fez carne” (Jo 1,14). Pois bem, o evangelho de Marcos continua dizendo que Jesus “veio ao mundo” precisamente para que homens e mulheres pudessem viver sua verdadeira identidade, ou seja, na sua essência, ser palavra oferecida, partilhada, escutada… Em sentido mais profundo, nascemos da palavra, nela existimos, nos movemos e somos, como seres de linguagem.

Este é o maior de todos os milagres: que homens e mulheres aprendam a escutar e responder, sendo o que são, “palavra feito carne” no tempo. Assim nos mostra o relato da cura de um surdo-mudo na região da Decápole, a quem Jesus abre os ouvidos e desata a língua para que pudesse escutar a palavra, dizê-la e dizer-se, partilhando assim sua vida com os outros.

De Jesus foi dito que “passou pela vida fazendo o bem” (At 10,38). Defendeu sempre as pessoas, frente à tirania das autoridades religiosas, das normas e tradições, apostando por sua dignidade. No encontro com Ele, muitas pessoas se sentiram reconhecidas, pois Ele sabia olhar o coração de cada uma delas; elas também se sentiram libertadas das escravidões de todo tipo e impulsionadas a viver com mais intensidade, saindo de sua situação tão desumana.

Trouxeram-lhe um homem surdo (não é capaz de escutar a palavra), que falava com dificuldade…” (tem a língua presa). É um enfermo de comunicação: não pode falar corretamente nem se expressar com desenvoltura, não pode escutar a voz de Deus nem se comunicar de verdade com os outros. No fundo, é um escravo de sua própria surdez e mudez: não consegue entender o que dizem, não pode se manifestar.

O enfermo é a expressão de uma humanidade que não tem acesso à palavra: as leis religiosas o impedem de entender e falar, fazendo-o puro espectador em um sistema onde outros pensam e decidem em seu nome, mantendo-o fechado em si mesmo. 

Aqueles que trouxeram o surdo-mudo até Jesus são anônimos; não sabemos quem são, se eram familiares ou amigos, nem sequer quantos formavam o grupo. O que podemos intuir é que estas pessoas buscaram o melhor modo de ajudar a quem tinha dificuldade e foram capazes de se organizar para isso. Não pediram algo para si mesmos, mas o bem para quem estava mais ferido em sua dignidade.

O surdo-mudo deixou-se ajudar e acompanhar pelos outros. Porque, às vezes, alguém está tão bloqueado que não pode, por si mesmo, sair da situação na qual se encontra. Se o surdo foi apresentado diante de Jesus é porque também ele se deixou apresentar.

Nessa expressão, encontramos o valor da amizade, a força do grupo ou da comunidade. Todos precisamos uns dos outros! Quanto bem podemos fazer uns aos outros! 

Marcos supõe que este enfermo, embora tivesse amigos que o levassem ao lugar onde estava Jesus, não tinha recebido ainda uma devida atenção pessoal. Pois bem, Jesus a oferece, pela primeira vez, respondendo ao desejo daqueles que o trouxeram: o acolhe, o toma consigo e o trata como irmão/amigo, iniciando uma terapia de proximidade e conversação simbólica, numa linha de humanidade básica (que possa ouvir, que possa falar!). Jesus não lhe ensina nenhuma doutrina nem lhe complica a vida com leis e normas mais pesadas. Realiza numerosos gestos significativos: tira a pessoa do entorno no qual se mantinha surda e com dificuldades para falar, afastando-a um pouco do grupo; toca-lhe os ouvidos, a língua, os órgãos do corpo onde se manifesta o bloqueio; eleva seus olhos ao céu como expressão de oração, de sintonia permanente com seu Abba.

“Ephathá!” (abre-te), é a única palavra que Jesus pronuncia neste relato. Só pronuncia uma palavra e, surpreendentemente, não é “ouve”, “escuta” ou “fala”… É “abre-te”.

Por meio de seus gestos e palavra (por sua vida inteira), Jesus pôs em marcha um processo definitivo de comunicação, semeando “a palavra”, isto é, fazendo com que os homens e as mulheres pudessem ouvir e falar. Jesus não impõe aos surdos-mudos um tipo de palavra (não os obriga a pensar e falar de uma maneira), mas faz algo muito mais profundo: oferece a eles uma possibilidade de comunicação, para que sejam eles mesmos os que falam, os que expressam em suas ideias e sentimentos.

“Ele tem feito bem a todas as coisas”: essa é a experiência que Jesus nos oferece. Ao encontrar-nos com Ele, sua força sanadora rompe nossas ataduras e bloqueios. Assim como o homem do evangelho, também nós experimentamos nossa língua se desatar e poderemos, assim, pronunciar nossa própria palavra. Uma palavra que se multiplica no encontro com os outros. 

A escassez de escuta na comunicação humana atual é, talvez, causa e consequência desse excesso de palavras que padecemos. Causa, porque, ao não nos sentir escutados, pensamos que, falando mais, talvez consigamos fazer chegar algo ao nosso interlocutor. Consequência, porque, frente a tal torrente de palavras, optamos por não escutar, já que não somos capazes de assimilar tanta informação.

Precisamos abrir o nosso mundo interior para fazer chegar aí um pouco de luz. Isso significa olhar, reconhecer, nomear e acolher tudo o que se move no campo dos sentimentos e das emoções. Implica também o abrir para reconhecer nossa sombra e abraçá-la. Porque só o encontro com tudo isso tornará possível viver de maneira integrada, unificada, harmoniosa, serena e criativa.

É preciso ter vivido este tempo interior gratuito para saber escutar. Um trabalho para toda a vida. É quando estamos preparados para saber escutar o outro.

Mas é preciso saber ativar a capacidade de escuta. É uma atitude sábia, ou seja, escutar com atenção, seguir as razões ou a argumentação do outro. Não confundir escutar com ouvir: ouvir vozes, ouvir movimento das cordas vocais, ouvir falar… Ouvir faz referência ao ato simples, desnudo, de perceber um som; escutar é o ato reflexo, consciente, atento, desse ouvir. Acontece com frequência que escutamos sem ouvir, do mesmo modo que também ouvimos sem escutar. Chegam até nós os sons do falar alheio, ouvimos seus ruídos, mas não suas palavras. 

As palavras só se abrem para a escuta. Saber escutar é saborear o que o outro diz; e isto pede, em primeiro lugar, ter aprendido a escutar-se a si mesmo. 

Texto bíblico: Mc 7,31-37

Na oração: em nosso contexto, há uma doentia “surdez” generalizada, alimentada pelas “redes sociais”; escutam-se atentamente os aparelhos eletrônicos, mas não as pessoas; escasseia-se uma atitude de escuta das carências e das palavras dos outros; atrofia-se a capacidade de escuta dos sofrimentos e dos sentimentos dos demais; distancia-se da escuta da Palavra de Deus. É por isso que, vivendo numa sociedade da comunicação, nos sentimos incomunicáveis; numa sociedade de ruídos, e vivemos todos sem nos escutar.

– Na cultura do ruído e do palavreado crônico como a nossa, o silêncio nos aterroriza, porque o confundimos com o mutismo. Ouvidos saturados de ruídos não podem perceber o som do Silêncio.

– O que está surdo e mudo em você? Como se manifesta?

– Você vive em atitude de abertura e sensibilidade diante daqueles que não têm voz nem vez?

 

Padre Adroaldo Palaoro, SJ

Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana (CEI).

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