“… fiquei com medo e escondi o teu talento no chão” (Mt 25,25)
Normalmente, as parábolas de Jesus deixam transparecer dois sentidos: um, de anúncio (de boa notícia, de revelação do rosto misericordioso de Deus…); outro, de denúncia (põe às claras a falsa imagem de Deus).
A conhecida “parábola dos talentos”, proposta para este domingo, geralmente é lida de forma ingênua, fora do contexto em que Jesus a narrou. É preciso ter presente que Jesus, ao contar esta parábola, encontrava-se em Jerusalém, vivendo um violento conflito com as autoridades religiosas. E a principal fonte de conflito estava justamente na “imagem de Deus”. Na parábola, Jesus denuncia o “deus mesquinho” dos fariseus e sacerdotes que só desperta medo. Por isso, o texto original não começa com este refrão: “o Reino de Deus é semelhante…”, mas “é como um homem que partiu para o estrangeiro”.
Diante de um “deus mesquinho”, resposta mesquinha; os que receberam cinco e dois talentos se limitam a render 5 e 2 talentos; também eles são mesquinhos, pois não são capazes de ir mais além.
No fundo, Jesus está denunciando com a parábola o seguinte: “o ‘deus’ que ameaça com a exigência da prestação de contas até o último centavo é um ‘deus’ que bloqueia e anula as pessoas, os grupos, as comunidades”. Seu Deus é o Pai de mãos abertas que derramam graças abundantes a todos. Diante do excesso do amor de Deus, a resposta é a da gratidão. Quem se deixa determinar pela gratidão não se contenta com cinco ou dois talentos; vai sempre além; entra no fluxo do “magis”, do “mais”.
Por isso, a “parábola dos talentos” nos motiva a perguntar: quem é o Deus em quem eu creio? É o “deus mesquinho” da lei ou o Deus do Amor exagerado? A fé no Deus de Jesus me faz contentar com a mediocridade ou me move a ir sempre mais além?
Para viver o seguimento de Jesus com mais intensidade, é urgente quebrar a falsa imagem do Deus que ameaça, que não liberta nem cura, que nos amarra e não nos deixa viver.
Nesse sentido, é útil mergulhar e conhecer o verdadeiro sentido da parábola dos talentos.
Normalmente, costuma-se explicar esta parábola dizendo que Deus dá a cada pessoa uma quantidade determinada de talentos, divinos e humanos, dos quais terá de prestar contas a Ele, até o último centavo, no dia do Juízo Final. Quando se interpreta a parábola desta maneira, o Deus que aí aparece é uma ameaça insuportável; ao considerar a parábola como uma exortação à responsabilidade, falsifica-se o sentido autêntico da mesma. O que está em questão aqui é a falsa “imagem” de Deus que todos trazemos e que foi introjetada por uma “religião” centrada no legalismo, no moralismo, nas mortificações, nas devoções estéreis, alimentando culpa, angústia, uma longa cadeia de medos, da primeira à última respiração, e nos ameaçando continuamente nesta terra de sombras.
O medo nos deixa vulneráveis à manipulação; e muitas “autoridades religiosas”, de diferentes religiões, são “experts” em ativar medos nas pessoas.
Diferentes medos congelam nossas relações, atormentam nossa vida, quebram nossa serenidade, obscurecem o nosso próprio ser, matam nossos sonhos e intuições.
Nada mais terrível do que ter medo de tudo. Com medos é insuportável viver.
Quando este medo se projeta na relação com Deus, passamos a alimentar uma falsa imagem de Deus.
Quem pensa e sente dessa maneira, dificilmente pode relacionar-se com o Deus que Jesus nos revelou. Ele já não é o Pai misericordioso, senão o “todo-poderoso” que se compreende a partir do poder, da grandeza, da onipotência e tudo o que supera infinitamente o ser humano. Como consequência, a relação com Ele já não é mais vivida a partir da bondade e do amor, mas da força e do medo.
Quem está convencido de que Deus atua assim, na realidade, crê num “deus” que é um constante perigo e uma ameaça insuportável.
Como pessoas de fé, muitas vezes temos imagens idólatras de Deus. Adoramos, em nossa mente e coração, representações distorcidas, falsas, de Deus. Assim, Deus se converte em um ídolo que provoca medo, temor, submissão, coação, repressão. Um “deus” mais digno de ser rejeitado que de aceitação. Este “deus” é uma carga, uma opressão, não expande nossa vida, senão que a empequenece e atrofia nossa humanidade.
O Deus de Jesus não pode ser isto. Seria a inversão e deformação dos evangelhos. Aquele que é o mais Santo, Amoroso e Libertador, nós o convertemos no mais temível e rejeitável. Há algo de espantoso nesta capacidade humana de dar volta a tudo e converter o melhor no pior. Nem a imagem de Deus escapou a esta capacidade humana de corromper até o mais santo. O filósofo judeu Martin Buber afirma: “Quê outra palavra da fala humana sofreu tantos abusos, foi tão corrompida, tão profanada! Todo o sangue inocente por ela derramada despojou-a de todo seu esplendor. Toda a injustiça encoberta com ela apagou seus traços salientes. Quando ouço chamar ‘Deus’ ao mais elevado, às vezes me parece quase uma blasfêmia”.
À luz da parábola dos talentos, todo aquele que traz em sua consciência um Deus que mete medo não fará nada nesta vida que valha a pena, já que o muito ou o pouco que recebeu será enterrado, por causa do medo. A promessa converte-se em ameaça, o chamado em imposição, a existência em castigo, o Evangelho em lei.
Crer em um Deus que pede conta até o último centavo é o mesmo que crer em um juiz justiceiro que torna a vida amarga e pesada. Sem a superação cotidiana dos medos, nossa experiência de Deus estará comprometida, perderá sua força inovadora e nos fará menos humanos.
A fé no “Deus que dá medo” se expressa no medo permanente como atitude de vida. Demasiado temor, demasiada falta de espontaneidade e de alegria na relação com Deus e com os outros.
De fato, não existe depósito de munição mais potencialmente explosivo do que os estoques de medo guardados nas escuras profundezas do nosso ser, sobretudo aqueles alimentados por uma falsa imagem de Deus. É preciso, portanto, rastrear, identificar, compreender e desterrar os medos de nossos corações.
É urgente substituir a cultura do medo pela cultura da coragem. A coragem desbloqueia energias, impulsiona decisões, levanta projetos, reacende a criatividade e o gosto por viver.
É preciso superar a imagem de Deus que exige a perfeição, que nos cobra até o último centavo, que não admite a possibilidade do fracasso, que nos paralisa, dá medo… Crer num Deus assim nos faz duros, inflexíveis, exigentes, perfeccionistas… “Livra-nos do Deus que dá medo!”.
Mas, no fundo, a parábola tem também um elemento positivo. Ela nos anima a ser o que somos, a não enterrar o talento do amor e dos melhores recursos que recebemos, a não nos deixar vencer pelo medo.
Apesar de sua aparente inocência, a “parábola dos talentos” contém uma carga explosiva. É surpreendente ver que o “terceiro empregado” é condenado sem ter cometido nenhuma ação má. Seu único erro consiste em não fazer nada: não arrisca seu talento, não o faz frutificar, conserva-o intacto em um lugar seguro.
A parábola deixa transparecer esta mensagem: não ao conservadorismo, sim à criatividade; não a uma vida estéril, sim à resposta ativa a Deus; não à obsessão pela segurança, sim ao esforço arriscado por transformar o mundo; não à fé enterrada sob o conformismo, sim ao trabalho comprometido em abrir caminhos ao Reino de Deus…
É significativo observar a linguagem utilizada, muitas vezes, pelas “autoridades eclesiais” ao longo dos anos, e que expressam a atitude do “terceiro empregado”: conservar o depósito da fé, conservar a tradição, conservar a moral e os bons costumes, conservar a doutrina, conservar a vocação…
Esta tentação do “conservadorismo” é mais forte em tempos de crise religiosa. É fácil então invocar a necessidade de controlar a doutrina, reforçar a disciplina e a prática da lei, garantir a moral autocentrada, assegurar a pertença à Igreja… Tudo pode ser explicável, mas, na prática, aqui se revela uma maneira de desvirtuar o Evangelho e congelar a criatividade do Espírito.
As atitudes que devemos alimentar hoje, no interior da Igreja, não se chamam “prudência”, “fidelidade ao passado”, “resignação”… É preciso alimentar outras atitudes, em sintonia com Aquele que se deixou conduzir pelo Espírito: “busca criativa”, “audácia”, “capacidade de risco”, “escuta do Espírito”.
Texto bíblico: Mt 25,14-30
Na oração: a verdadeira “experiência espiritual” é estabelecer com o “Deus da Vida” uma relação “desinteressada”, isto é, uma relação na e a partir da gratuidade; é passar do “Deus do mérito” ao “Deus do dom”, do “Deus juiz” ao “Deus Pai-Mãe”, do “Deus ameaça” ao Deus que nos acolhe em nossa pobreza e fragilidade…
– Sua relação com Deus é marcada pelo medo ou pela confiança amorosa?
Padre Adroaldo Palaoro, SJ
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana (CEI).