“Amarás o Senhor teu Deus… Amarás ao teu próximo como a ti mesmo” (Mt 22,37-39)
Vivemos tempos de profundas rupturas desumanizadoras no campo social, político, racial e sobretudo religioso; são tempos de ira e de ódio, frutos do fundamentalismo e da intolerância que envenenam as relações interpessoais, se visibilizam na internet e nas redes sociais, se alimentam de sentimentos putrefatos que brotam de corações rígidos e mentes doentias. As mentiras e as fake news são servidas em pratos indigestos, através de coações, insultos e ameaças. Há excessivas palavras que afogam, campanhas sórdidas, comentários maldosos, notícias sem fundamento e que destroem reputações… Quando, carregado de ódio, alguém desqualifica o outro em nome de uma “pretensa verdade”, na realidade o que está fazendo é inocular em pequena escala o mesmo vírus que, em grande escala, desencadeia guerras e terror.
Este cenário macabro parece dominar tudo. O amor está sendo banido das esferas públicas, dos ambientes familiares, dos espaços religiosos, das relações sociais. Sabemos que, onde não há amor, impera o fundamentalismo, o moralismo, o negacionismo, o fanatismo… Onde não há amor, a verdade se corrompe. Onde o amor é exilado, ali transparece a podridão da desumanização. E o mais escandaloso: tal ambiente fétido é alimentado por “cristãos vestidos em pele de lobo” que, hipocritamente, mostram uma “cara lavada”, mas o “interior está cheio de roubos e maldades” (Lc 11,39).
Mas, como seguidores(as) d’Aquele que também foi vítima de estruturas políticas e religiosas injustas, somos movidos a renovar a esperança de que, apesar de tudo, o amor é mais forte que o ódio e a morte.
Infelizmente, a palavra “amor” se banalizou tanto que muitos a usam para justificar a violência. É preciso resgatar a sacralidade do amor. Não dispomos de um nome melhor para imaginar a Realidade Última, Deus, senão dizendo que ela é amor.
Segundo S. João, “Deus é amor”. Esta afirmação perpassa, carregada de mistério e de promessa, toda nossa história; nela se toca o coração mesmo do cristianismo. É uma expressão nuclear, irradiante. Ela sozinha já seria capaz de manter a esperança no mundo. Captar sua profundidade significa apalpar seu mistério, encontrar a chave do sentido, entrar no seu fluxo e chegar à fonte da vida.
É dessa fonte que a força do amor brota das entranhas d’Aquele que é Puro Amor, que atravessa todas as etapas da evolução da criação e une todos os seres, dando-lhes afeto profundo e beleza. Trata-se de um “amor cósmico” que perpassa tudo por pura gratuidade. O místico Angelus Silesius afirma: “A rosa não tem um porquê. Floresce por florescer. Não se preocupa se a admiram ou não. Ela floresce por florescer”. Assim é o amor: não tem “porquês”, “sem-razões”. Ama porque ama. O amor floresce em nós como fruto de uma relação livre entre seres livres e com todos os demais seres.
A liturgia deste domingo está dedicada ao tema do amor, à experiência do amor, a descobrir em nós esse fogo que nos circula, de mil formas, em mil direções, de dentro para fora, de fora para dentro.
Que é o amor? O melhor é não o definir, mas vivê-lo. Sentir-se amado, amar, é uma experiência inefável. Estão aí os poetas, os músicos e os artistas para confirmar isso.
Jesus condensou (“compactou”) a Lei inteira e os profetas em dois mandamentos: “ama a Deus e ama a teu próximo”. Neles estão contidos todos os documentos, leis, discursos, programas, mensagens e declarações que foram sendo criados ao longo da história da vida cristã.
A Lei, que em princípio serviu para orientar o caminho do povo de Israel, contaminou-se e se viu reduzida a um fardo de prescrições que se impunham aos mais fracos.
O amor não é uma norma ou lei, no estilo dos 248 preceitos e das 365 proibições da religião judaica. O amor é esse modo de viver que abre nossa existência aos outros. Não é lei que se impõe a partir de fora, mas impulso que brota do mais profundo de nosso ser, pois, na essência, somos semelhantes ao Deus Amor.
Deus é puro dom, amor total. Trata-se de descobrir e ativar em nós esse dom incondicional de Deus e que através de nós deve chegar a todos. O amor a Deus sem entrega aos demais é pura farsa.
Portanto, aqui estamos diante da essência da vida cristã. E é tão simples: basta amar.
Infelizmente, como gostamos de complicar as coisas! Quantas leis, preceitos e normas criamos! Quantos ritos estéreis e devoções vazias estabelecemos! Quantos códigos promulgamos! (o Código de Direito Canônico contém mais de 1700 cânones ou “artigos”).
A espiritualidade de muitos cristãos frequentemente está associada a cumprir ritos, realizar algumas práticas piedosas autocentradas, carregadas de penitências e mortificações impostas pelos outros e que acabam alimentando culpas e angústias.
No entanto, Jesus Cristo, com poucas palavras, deixou tudo muito claro, simples e fácil de entender para qualquer um. Poucas palavras foram suficientes para deixar as autoridades religiosas surpresas: “Amarás o Senhor, teu Deus, com todo teu coração, com toda tua alma, com todo teu ser”. Este mandamento é o principal e o primeiro. O segundo é semelhante a ele: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo”.
Amar a Deus e ao próximo são totalmente inseparáveis. Jesus deixa isso suficientemente claro nestas duas afirmações, pois o texto grego de Mateus diz que o segundo é “omoía” (igual) ao primeiro. Esta palavra grega significa “equivalente, igual, o mesmo, que tem a mesma força”.
Portanto, trata-se de um mesmo e único amor. Não é possível um sem o outro. Da mesma forma que para formar uma cruz são igualmente necessários o tronco vertical e o horizontal, e se falta um não há cruz, assim acontece com o amor a Deus e ao próximo: são inseparáveis um do outro.
Mas, qual dos dois amores é o primeiro? É preciso privilegiar o tronco vertical, dirigido a Deus, ou o horizontal, dirigido ao próximo? No final de nossa existência, seremos perguntados pelo tronco vertical: “tive fome e me destes de comer, tive sede e me destes de beber, estive nu e me vestistes, enfermo e me atendestes, no cárcere e me visitastes”.
Mas, é muito mais fácil e menos comprometedor limitar-se ao tronco vertical e reduzir nossa fé a ritos, cultos, penitências, mortificações, novenas, devoções vazias, sacrifícios, procissões…, e permaneceremos tranquilos porque já cumprimos o que está prescrito, embora nossa vida vá por caminhos totalmente contrários ao evangelho, ou seja, sem compromisso com a justiça, a fraternidade, a solidariedade, o amor, a ética, a misericórdia, o empenho por transformar as estruturas sociais injustas que geram e alimentam profundas desigualdades, misérias e violências.
Por isso, o que distingue o(a) seguidor(as) de Jesus tem como eixo o amor a Deus e aos irmãos, sobretudo os mais rejeitados e excluídos. “Ama e faz o que quiseres” (S. Agostinho). Amar é tirar o outro do anonimato, dar-lhe rosto, nome, vida, é ativar nele a autonomia, a autoria de sua vida. O amor não é algo que eu dou, mas uma maneira de ser alguém diante do outro, para o outro, com o outro.
Assim, o núcleo da vivência cristã se revela como uma iniciação no amor intenso. O amor que procede de Deus (que nos move) deverá iluminar todas as nossas opções e ações em favor da vida.
Vida cristã quer dizer vida vivida com intensidade, pois o amor é o motor dessa vida. É o próprio Deus que, por sua iniciativa totalmente gratuita, nos ama e nos capacita para amar.
A vida no amor revela uma existência integrada a partir do coração. Isto supõe lucidez, ter uma motivação inspirada em todas as coisas particulares e em todas as decisões da vida. “A Ele amando em todas as criaturas e a todas as criaturas n’Ele” (S. Inácio).
Texto bíblico: Mt 22,34-40
Na oração: o Amor originante e fontal de Deus lhe envolve permanentemente; marcado pela gratidão, queira entrar em sintonia, “ajuste-se” ao modo de amar de Deus: amor descendente, amor sem fronteiras, oblativo, aberto, e que se “revela mais em obras do que em palavras”.
– Movido pelo Amor transbordante de Deus, entre no fluxo desse Amor criativo, “descendo” à realidade cotidiana e ali deixando transparecer esse mesmo Amor através de sua presença humana e humanizadora.
– Faça “memória agradecida” de sua presença amorosa na realidade cotidiana. Viva em contínua “ação de graças”.
Padre Adroaldo Palaoro, SJ
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana (CEI).