Bocas famintas

Eu que escrevo, você que me lê, diariamente, temos três ou mais refeições para saciar nosso apetite. Assim acontece com 90% dos brasileiros; somos a maioria! Contudo os outros 10%, segundo noticiários, não têm o que comer. Passam fome. As sobras de nós, os 90%, amenizariam certamente boa parte dos 10%.

O Brasil é o maior produtor de alimentos de origem agrícola e de proteína animal. Exportamos milhões de toneladas que rendem milhões de dólares. Pois é, e sobram 20 milhões de pessoas que passam fome! Fico estarrecido diante dessa realidade. E me incomoda que eu faça tão pouco para ajudar a saciar essa gente. Sei que uma ação solitária resolve pouco, embora possa amenizar a fome de algumas pessoas. E as outras? O que dizer para uma mãe que tem três ou quatro filhos e acordar sem ter o que dar de comer para eles?

Há gente que se sensibiliza e ajuda como pode, há gente insensível que até critica essas pessoas, dizendo que não trabalham e querem viver às custas do governo. Pode ser até verdade em alguns poucos casos, mas não se aplica à maioria. O pobre é frequentemente pobre em tudo. Não tem escolaridade, vive num ambiente pobre, não tem perspectiva de futuro, vive na esperança de ganhar alguma cesta básica. Não tem qualificação profissional, seu salário é baixo; em muitos casos, nem carteira de trabalho tem. Catam latinhas e plásticos descartados de nossas casas. Tentam sobreviver assim. No meio deles, às vezes, há os malandros que viciam as crianças na droga e, depois, elas se tornam dependentes. Em muitas famílias, muitas delas desestruturadas, reina um ambiente nocivo e frequentemente agressivo; a fome é apenas um dos problemas.

Nós, os 90%, acostumamo-nos a esquecer essa realidade ou estamos “vacinados”, já “imunes”, achamos “normal” essa situação. De vez em quando, lamentamos a situação quando vemos casos desesperados de mães que imploram. Passada a comoção, voltamos a nosso cotidiano, tendo boas intensões, desejando que tenham boa sorte.

Enquanto nossa mente e coração ficarem presos ao lucro a qualquer preço, ao acúmulo sem medida em nossas mesas, enquanto não recuperarmos a sensibilidade humana para com os humanos, essa situação vai persistir. Para resolver o problema da fome, bastaria distribuir melhor um pouco do que produzimos em alimentos, contudo somente isso não resolve a situação da pobreza. É preciso uma atitude que vá desde nós, que comemos todas as refeições que queremos diariamente, até aqueles que têm a responsabilidade política e administrativa para mudar essa ideologia capitalista que não vê o outro como pessoa, mas apenas como crachá que produz.

Como podemos ficar com a consciência tranquila quando vemos que cachorros e gatos são mais bem tratados do que pessoas? Uma cena inusitada diante de um pobre que pede comida e a ração de primeira para o cachorro de estimação. Gasta-se o que for necessário pela ração, mas não tem um troquinho para um pão para o faminto. Ao cachorrinho se dá todo o conforto e carinho; ao pobre, o olhar de desprezo e pede-se que não volte mais a bater à porta. Não estou dizendo que os animais devam ser maltratados, mas que se tivesse com o ser humano um pouco mais de compaixão e solidariedade, que o tratamento ao humano fosse próximo àquele que dispensado aos animais. Quem sabe, assim, a fila das bocas famintas diminuiria um pouco? Na consciência dos “humanos”, os 10% dos brasileiros famintos pesam mais do que os 90% de saciados.

Esse escrito é só uma reflexão, constatação! Deus nos ajude e nos mova a alguma ação em favor de pão para as bocas famintas.

Pe. Deolino Pedro Baldissera, SDS
Padre salvatoriano há 43 anos, professor e psicólogo pela Universidade Gregoriana de Roma, com mestrado em Psicologia e doutorado em Ciências da Religião. Atualmente é pároco em Videira-SC.

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