“Conheço as minhas ovelhas, e elas me conhecem” (Jo 10,14)
A liturgia do quarto domingo de Páscoa sempre celebra a imagem do Ressuscitado como “Bom Pastor”.
Terminados os relatos de Aparições do Ressuscitado, continuamos com textos pascais que nos falam de “dar a Vida”; a experiência pascal é que Jesus nos comunica Vida. Nós temos a possibilidade de fazer nossa essa Vida; trata-se da Vida mesma de Deus, que é a chave do tempo pascal. João não nos fala de uma vida para o mais além, mas de uma Vida que deve ser vivida como ressuscitada, aqui e agora.
Para a grande maioria de nossos contemporâneos, a imagem do “pastor” se revela anacrônica, provocando alergia em muitos. Em primeiro lugar, porque nos encontramos muito distantes daquela cultura agrícola e pecuarista na qual nasceu esta imagem; por outro, porque resistimos às imagens que se movem em chave de poder/submissão, e que arrastam, com frequência, uma história de dominação.
Concretamente, a imagem do pastor evoca, por si mesma, a da “ovelha” e do “rebanho”. E o contraste entre ambas faz aflorar na consciência de muitos a contraposição entre autoritarismo, por um lado, e submissão e alienação, por outro. Sem dúvida, a imagem do “pastor”, bem como a do guru ou do mestre, muitas vezes serve de pretexto para justificar abusos de diversos tipos, todos eles baseados no “poder religioso” que aquelas mesmas imagens conferem.
Não é “pastor” quem procura domesticar, manipular e dominar as “ovelhas”, mas quem “conhece pessoas”. Biblicamente falando, “conhecer” é criar relações de amor entre pessoas, no sentido amplo; assim se diz que homem e mulher se “conhecem” quando se amam; assim se “conhecem” filhos e pais, amigos, companheiros… O bom pastor não só “conhece” as ovelhas, mas também “é conhecido” por elas.
“Bom pastor” é o que cria relações de solidariedade com seus amigos e amigas; não os utiliza em favor próprio, não está acima deles(as), mas que os(as) ama e se deixa amar por eles(as); reconstrói os laços de liberdade solidária e comunhão, em vida e até na morte. O “pastor” verdadeiro não manipula consciências, não alimenta medo e nem cria dependências; pelo contrário, o pastor tem “autoridade” no sentido de ativar a autonomia e a autoria de quem o segue. Por isso, os seguidores e seguidoras de Jesus não são “servos(as)”, mas “amigos” do Bom Pastor e amigos uns dos outros.
A imagem de “ovelhas e pastor” deve ser usada com cuidado, porque pode justificar a existência de duas categorias na Igreja: quem manda e quem obedece.
Na Comunidade d’Aquele que disse que “quem quiser ser o primeiro que seja o último e o servidor de todos”, todos somos “pastores” de todos, todos somos responsáveis e todos podemos contribuir com nossos dons. Não se nega a função de coordenação ou de liderança. O que se nega é a sacralização do “poder religioso” em nome de Deus e que tem alimentado uma submissão doentia.
Essa alegoria do “Jesus Pastor” apresenta três características ou elementos principais:
– Pastor é Aquele que se esvazia de sua condição divina e se faz servidor de seus irmãos e irmãs; não vive para aproveitar-se deles(as), mas para acompanhá-los e ajudá-los;
– a essência mais profunda de todo pastor é o conhecimento: Jesus é verdadeiro pastor porque “conhece” as ovelhas, dialogando com elas em intimidade de coração;
– Pastor é quem “dá a vida”. Não se aproveita das “ovelhas”, vive para elas, em gesto de conhecimento e de entrega, em comunhão de vida.
Jesus sempre se revelou como “Pastor” desprovido de poder, de prestígio, de manipulação das consciências.
Sua identidade de “pastor” esteve centrada na arte do cuidado que é gesto amoroso para com o outro, gesto que protege e traz serenidade; o “cuidado” é sempre uma atitude de benevolência d’aquele que quer estar junto, acompanhar e proteger. Jesus, como Bom Pastor, sempre se revelou como um “Ser de cuidado”, pura transparência do Pai cuidador e providente.
Cuidar é entrar em sintonia com… Disso emerge a dimensão de alteridade, de respeito, de sacralidade…
Cuidar é envolver-se com o outro, mostrando zelo e preocupação.
Quer conhecer o outro com o coração e não com a cabeça. O cuidado abre caminho para viver, com mais intensidade, a própria humanidade. E viver “humanamente” significa viver em vulnerabilidade.
Quem não aceita a própria vulnerabilidade e interdependência não desenvolve atitudes de cuidado. Quem não aceita ser cuidado também não está disposto a cuidar dos outros. Somos educados para sermos “super-homens” ou “supermulheres”; aprendemos a não admitir e a não aceitar o limite, a vulnerabilidade, o fracasso… O ser humano é finito, portanto, vulnerável. Ele não se basta a si mesmo; necessita de relações com o seu meio, com os seus semelhantes e com o Transcendente, dando sentido à sua existência.
Cuidar do outro significa, antes de tudo, velar por sua autonomia; significa ativar a capacidade de dar direção à sua própria vida. O exercício de cuidar não deve ser visto como uma forma de imposição sobre o outro, e menos ainda como um modo de exercer um controle, atrofiando a autonomia e a liberdade do outro. Pelo contrário, quando alguém se dispõe a cuidar compassivamente o outro, faz todo o possível para que esse outro possa viver e expressar-se conforme determina seu coração, mesmo quando isso não coincide necessariamente com a intenção do cuidador.
A identidade do verdadeiro pastor está na capacidade de “dar a vida”, como equivalente de um amor que não tem medida. No extremo oposto da voracidade egoica, que vê os outros e as coisas como objetos com os quais saciar o próprio vazio, o amor de quem transcendeu seu “eu” não busca outra coisa senão oferecendo, doando a vida, dia a dia.
Na medida em que o(a) seguidor(a) de Jesus vive como “ressuscitado”, sua vida se torna Vida maior e, assim, estará disposto(a) a “gastar” a vida em função dos outros. Essa Vida é um “movimento a partir de dentro”, ou seja, sair de si mesmo para ir ao encontro dos outros e potenciar suas vidas; tal movimento, que tem sua origem na mesma Vida do Ressuscitado, mobiliza o que há de “melhor” em cada um para que viva de maneira mais oblativa e comprometida no cuidado para com todos.
A partir dessa perspectiva, podemos reconhecer Jesus Ressuscitado como o “espelho” daquilo que já somos. Ele vive o que é na sua essência, e isso faz com que se desperte em nós o que somos, numa identidade compartilhada.
Todos somos pastores, mestres e discípulos. Todos nos encontramos em um processo de aprendizagem. Podemos, sem dúvida, reconhecer as pessoas que nos ajudaram e que despertaram o melhor de nós mesmos. Mas, não foi porque se impuseram e se empenharam em conduzir nosso caminho, mas porque, sendo humildes e transparentes, nos remeteram ao nosso próprio “pastor e mestre interior”.
Não precisamos de pastores nem gurus, mas companheiros(as) de caminho, acompanhantes lúcidos e humildes, compartilhando aquilo que cada um nos proporciona experimentar.
Texto bíblico: Jo 10,11-18
Na oração: abrir espaço interior para que a Graça desvele seu próprio interior: quem predomina aí dentro? O pastor cuidadoso ou o lobo voraz?
– Fazer memória do seu nobre “ministério do pastoreio”: na sua família, comunidade, ambiente de trabalho, relações sociais…
Padre Adroaldo Palaoro, SJ
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana (CEI).