“Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida” (Jo 14,6)
A conversação de Jesus com os discípulos no evangelho deste domingo faz parte do chamado “discurso de despedida”, antes de sua morte. Quando ela acontece, o clima entre os discípulos era de máxima tensão e de espera incerta do desenlace. No final da última Ceia começam a intuir que Jesus já não estará muito tempo com eles. A saída precipitada de Judas, o anúncio de que Pedro o negará em breve, as palavras de Jesus falando de sua próxima partida deixaram a todos desconcertados e abatidos.
O que vai acontecer com eles?
Jesus capta a tristeza e a perturbação deles. Seu coração se comove. Esquecendo-se de si mesmo e daquilo que o espera, Jesus procura animá-los: “Que não se perturbe vosso coração; crede em Deus e crede também em mim”. E, no curso dessa conversação, Jesus faz esta confissão: “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida. Ninguém vai ao Pai, senão por mim”. Não devem nunca esquecer isso.
É nesse contexto de despedida que Jesus se atreve a dizer “eu sou”, mas não um eu isolado em si (um eu sem Deus, um eu sem os outros), mas um eu aberto ao Pai (um eu-caminho) e dirigido a todos que queiram acolhê-lo (um eu-expansivo, que se faz verdade e vida para todos). O “eu” de Jesus se faz caminho, um caminho para o Pai, um caminho no qual a verdade se revela e a vida se abre.
Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Estamos diante da afirmação mais densa referida à identidade e à essência de Jesus. Não se conhece na história das religiões uma afirmação tão audaz. Jesus se oferece como o caminho que podemos percorrer para entrar no mistério de um Deus Pai. Ele nos faz descobrir o segredo último da existência. Ele pode nos comunicar a vida plena que todo coração humano aspira.
O conceito de “caminho” supõe um destino, o Pai. O conceito de “verdade” pressupõe um conteúdo, o mesmo Jesus. Dos três termos, o único absoluto é “Vida”. Porque possui a Vida, Jesus é verdade e é caminho.
Hoje reina, em quase todos os ambientes, a confusão, a dispersão, o medo. Há muitos que buscam um caminho para sobreviver: os imigrantes, os refugiados, os famintos, os que não têm um horizonte de sentido… Outros, em meio a uma solidão de um mundo hiperconectado, sentem a desorientação da multiplicidade de mensagens portadoras de mentiras e “fake news”. Outros ainda esvaziam suas vidas investindo no poder, na vaidade, no acúmulo de riquezas… e acabam caindo na maior frustração e vazio interior.
“Eu sou o caminho.” O problema de muitos não é que vivem extraviados ou perdidos. Simplesmente vivem sem direção, envolvidos numa espécie de labirinto: andando e girando por mil caminhos que, a partir de fora, não os levam a lugar nenhum.
E o que pode fazer um homem ou uma mulher quando se encontra sem caminho? A quem dirigir-se? Onde acudir? Se se aproxima de Jesus, o que encontrará não é uma religião, mas um caminho. Às vezes, avançará com fé; outras vezes, encontrará dificuldades; poderá até retroceder, mas está no caminho certo que conduz ao Pai. Esta é a promessa de Jesus.
Jesus não diz “eu sou o templo, o edifício, a plataforma, o porto”. Diz “eu sou o caminho”. É como dizer: “eu sou a maneira de andar, de dirigir-se ao horizonte, de navegar”. Ele não é um ser-refúgio entre nuvens, mas que “se faz caminho ao andar”, vive inserido na realidade do dia a dia, presente nos sonhos, nos problemas e desafios dos seus seguidores.
“Eu sou a verdade.” Estas palavras soam como convite escandaloso aos ouvidos pós-modernos. Nem tudo se reduz à razão. A teoria científica não contém toda a verdade. O mistério último da realidade não se deixa prender pelas análises mais sofisticadas. O ser humano é chamado a viver diante do mistério último da realidade.
“Verdade” que não se reduz a teorias, a dogmas, doutrinas…, mas transparência da nossa essência, do nosso ser verdadeiro. Jesus não diz: “eu tenho a verdade”, mas “eu sou a verdade”, “sou verdadeiro”, coerente com o seu modo de ser e viver.
“Eu sou a vida.” Jesus pode transformar nossa vida. Não como o mestre distante que deixou um legado de sabedoria admirável à humanidade, mas como alguém vivo que, a partir do mais profundo de nosso ser, nos infunde um germe de vida nova.
Esta ação de Jesus em nós acontece quase sempre de forma discreta e silenciosa. O seguidor d’Ele só intui uma presença imperceptível. Às vezes, no entanto, nos invade a certeza, a alegria transbordante, a confiança total: Deus existe, nos ama, tudo é possível, inclusive a vida eterna.
Nunca entenderemos a fé cristã se não acolhemos Jesus como o Caminho, a Verdade e a Vida.
Caminho, Verdade e Vida: três grandes “fomes humanizadoras”; elas apontam para o sentido da nossa existência; expressam as três grandes buscas do ser humano. Três dimensões que nos fazem mais humanos. Não são necessidades periféricas, imediatas. Jesus se apresenta como resposta a estas buscas.
O ser humano é ser de travessia: é peregrino por natureza, busca um horizonte, desloca-se em direção a uma plenitude. Jesus se faz o centro deste Caminho.
Ali onde alguém faz o caminho como Jesus fez (peregrino entre os mais pobres e excluídos) está deixando transparecer em sua vida o rosto do Pai. Por isso, quem o vê, quem vive como Ele (em amor aberto à vida) vê o Pai da vida. Trata-se de “ver a Jesus” (esta é a experiência pascal), de vernos caminhando com Ele, assumindo Sua verdade, vivendo na dinâmica de Sua vida.
Nós somos a verdade, em um nós aberto, como Jesus, aberto a todos os que vão e vem, de um modo especial os mais pobres, os excluídos de todos os sistemas de “verdade” do mundo. Somos “verdade” na medida que somos verdadeiros, transparentes, sem segundas intenções…
O ser humano aspira vida plena; Jesus viveu intensamente; “morreu de tanto viver” – vida expansiva, voltada para os outros, compromisso com a vida. Plenificação de todas as dimensões da vida: corporal, afetiva, social, intelectual, religiosa…
Ser seguidor(a) de Jesus é fixar o olhar n’Ele, pois Ele é o centro do nosso caminho; ao caminhar com Ele, vamos nos revelando e a partir d’Ele vamos descobrindo nosso ser verdadeiro (que nos abre para acolher a verdade presente em cada ser humano – verdade que vai além das verdades religiosas, políticas, racionais).
Quem se descobre verdadeiro e sem máscara vive profundamente, alarga sua vida a serviço dos sem-vida. Esta é a via da humanização; e quanto mais nos humanizamos, mais nos divinizamos.
Por isso, Jesus, o homem radical, deixa transparecer o rosto do Pai: “quem me vê, vê o Pai”.
Esta nossa busca começa no retorno ao interior, onde o Senhor nos habita e nos move.
Podemos então afirmar que a busca de Deus e o encontro com Ele, a partir de Sua iniciativa, coincidem com a busca e o encontro de nós mesmos; buscar a Deus consiste, de algum modo, em buscar-nos a nós mesmos, isto é, o mais profundo e autêntico de nós, fruto da iniciativa criadora e amorosa do Senhor; trata-se daquele lugar e daquela direção profunda de nossa vida pessoal onde desvelamos a ação do Espírito que atua em nós.
Viver a partir de dentro: Deus habita no mais profundo de nós mesmos e realiza sua obra fazendo-nos nós mesmos, fazendo-nos pessoas únicas, originais, sagradas…
No nosso eu mais profundo habita o Espírito que, como “Senhor e doador da Vida”, configuranossa existência. Aqui se manifesta a ação personalizadora de Deus; este mesmo Deus nos individualiza de maneira totalmente original e irrepetível.
Podemos entrar “em nossa morada interior” porque ali se encontra a dimensão de eternidade que nos faz peregrinos, transparentes de nosso ser verdadeiro e famintos de vida plena.
Texto bíblico: Jo 14,1-12
Na oração: como cristãos, a maior frustração é ter pouco ou nada a oferecer ao mundo de hoje, pouco ou nada que justifique nossa existência como seguidores(as) d’Aquele que se revelou como “Caminho-Verdade-Vida”.
– Estas são as “fomes existenciais” presentes no seu interior?
Padre Adroaldo Palaoro, SJ
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana (CEI).