Em 2019, participei como articuladora do projeto Casa Lab: Laboratório de Fazeres da Mulher Periférica, promovido pelo Centro de Direitos Humanos e Educação Popular de Campo Limpo, o CDHEP. A iniciativa foi idealizada e coordenada por Silene Monteiro e, a partir de abril de 2019, eu me juntei a ela para contribuir com a estruturação e execução do projeto.
Em seu primeiro ano, o Casa Lab reuniu cerca de 15 mulheres moradoras dos distritos periféricos da Zona Sul de São Paulo-SP (Campo Limpo, Capão Redondo, Jardim Ângela e Jardim São Luís) para reformar uma edícula na sede do CDHEP e transformá-la numa oficina comunitária de fazeres criativos, com ferramentas de marcenaria, construção e artes. Esse processo, com dois encontros semanais, durou cerca de sete meses, com início em junho e encerramento em dezembro.
Nesse período, nosso grupo, formado somente por mulheres, construiu bancadas e bancos de trabalho nas oficinas de marcenaria, realizou pequenos serviços de manutenção elétrica e hidráulica, pintou as paredes da casa, fez um grafite coletivo e construiu um banco no jardim do CDHEP. Além das ações práticas, realizamos rodas de conversa sobre os desafios cotidianos da mulher moradora da periferia. Em algumas das atividades, contamos com a ajuda de profissionais mulheres especialistas nas áreas em que estávamos trabalhando. Ao fim do processo, a partir do trabalho coletivo e da criatividade de várias mulheres, a antiga casinha no fundo do terreno do CDHEP estava transformada em oficina, pronta para ser utilizada e apropriada para a realização de novos projetos.
“Entendíamos que cada uma ali tinha algum saber para compartilhar com o grupo”
O resultado final desse primeiro ciclo do Casa Lab, com diversos produtos executados, é muito interessante. No entanto, mais importante do que isso, foram as trocas e aprendizados que ocorreram ao longo dos sete meses de trabalho. Todas as atividades do Casa Lab foram embasadas na educação popular de perspectiva freiriana e no processo circular. Dessa forma, tínhamos como premissas o diálogo, a horizontalidade, a colaboração e a escuta das diferentes agentes envolvidas no processo.
Todos os nossos encontros começavam em roda, na qual cada uma de nós podia compartilhar como estava se sentindo, como estava sendo a semana e qual era a expectativa para a atividade do dia. Além disso, entendíamos que todas ali tinham algum saber para compartilhar com o grupo e, ao longo do projeto, buscamos fazer com que esses saberes fossem externalizados.
“Nós nos fortalecíamos para conseguir sair de situações de opressões, como o machismo…”
Nosso grupo era bastante diverso, com mulheres de diferentes idades, religiões e graus de escolaridade. Essa diversidade trouxe para o trabalho coletivo alguns desafios, mas, ao mesmo tempo, tornou o processo ainda mais rico. A chegada a um consenso, fosse sobre a cor de uma parede ou sobre o acabamento de um móvel, exigia longos debates e discussões, em que treinávamos nossa capacidade de argumentação e nossa generosidade ao renunciar a uma ideia ou ter de adaptá-la às escolhas do grupo.
Nisso, além de construir um mobiliário e pintar uma parede, criávamos laços afetivos e trabalhávamos nossas habilidades socioemocionais, num processo emancipatório, em que nós nos fortalecíamos para conseguir sair de situações de opressão, como o machismo. Com o passar dos meses e todas as nossas conversas e discussões, consolidados um grupo de amigas, em que, mesmo com o encerramento do primeiro ciclo do projeto, continuamos nossas trocas e rede de apoio.
“Sementes para a construção coletiva de um novo mundo”
O Casa Lab me afirmou o quão potente e transformador é reunir mulheres para conversar em roda e produzir algo coletivamente. Para mim, que sou filha de pais que se formaram politicamente numa comunidade eclesial de base da Igreja Católica, o Casa Lab foi uma maneira de retomar, de certa forma, o trabalho dos grupos de mães, que, nas décadas de 1970 e 1980, reuniam mulheres nas periferias para, a partir da leitura da realidade do bairro e da reflexão crítica em cima disso, traçar ações práticas para transformação do contexto de carência e precariedade. Acredito que ações como o Casa Lab e os clubes de mães, cada uma em seu tempo, são capazes de construir uma nova realidade conduzida por mulheres moradoras das periferias, pobres, negras e indígenas.
Cada participante do Casa Lab saiu fortalecida de alguma maneira, mas, mais importante do que a escala individual, talvez tenha sido que, em cada mulher, foram plantadas pequenas sementes para a construção coletiva de um novo mundo.
Ana Cristina da Silva Morais
Arquiteta e urbanista formada pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAUUSP) e moradora de Capão Redondo. Durante a graduação, desenvolveu pesquisa de iniciação científica sobre participação social em um projeto de urbanização de assentamento precário da cidade de Medellín, na Colômbia. Para tanto, realizou estágio de pesquisa na Universidade de Antioquia, em Medellín. Desde 2017, atua em coletivos e ações da periferia da Zona Sul de São Paulo-SP que discutem território. Estagiou na Secretaria Municipal de Habitação de São Paulo e, em 2019, trabalhou como articuladora do projeto Casa Lab, no Centro de Direitos Humanos e Educação Popular de Campo Limpo (CDHEP).