Este percurso de aproximadamente cinco anos como psicóloga na rede socioassistencial me levou a imensas reflexões sobre relações sociais e Política Pública, assim como nossos direitos e deveres como cidadãos. Muitos amigos próximos e familiares que sabem da temática com que trabalho me questionam, “Por que trabalhar com esse tema tão pesado?” ou “Eu não suportaria trabalhar com essa temática”.
Gostaria de mencionar os atendimentos psicossociais com crianças, adolescentes, responsáveis e agressores com os quais realizo acompanhamento. Citarei alguns tipos de acompanhamento, assim como experiências e percepções.
O trabalho com crianças, adolescentes e famílias inicia-se com os responsáveis, em um grupo. Isso porque julgamos extremamente necessária a implicação destes. A maioria, contudo, tem certa resistência em dar continuidade ao processo, já que o grupo tem o intuito de desvelar gradualmente alguns tipos de violência. Já com crianças e adolescentes, o trabalho é individual e em grupo, planejados em equipe para cada indivíduo, sempre olhando sua história e o tipo de agressão sofrida.
A violência na vida de alguém acontece sem pedir licença, sem hora marcada. Cuidar disso significa priorizar, deixando de lado outros compromissos. Assim, é preciso mudar a rotina, o que não é fácil, pois as famílias vivem em vulnerabilidade social extrema, e algumas horas fora do ambiente de trabalho podem fazer “faltar o pão na mesa”, como já ouvi diversas vezes. Procuramos sempre nos adaptar aos horários e dias da semana de cada família.
O fenômeno da violência é visto como algo a ser negado, pois, em nossa sociedade, o que é valorizado é a perfeição. Por isso, na maioria das vezes, olhamos a violência como uma atitude do outro ou com olhar de julgamento. A violência quase sempre é justificada, por meio de manipulação, como um “ato de amor”.
A violência intrafamiliar e a transgeracionalidade está na sociedade e dentro de nós, em formatos diferentes. Nós também reproduzimos essa violência, e nossos filhos a aprendem de nós e as reproduzem. A criança não tem capacidade de avaliar como aquilo é danoso, ela simplesmente reproduz o que apreende. A violência também está embutida naquilo que achamos ser melhor, como a educação.
Existe uma tendência geral a achar que a violência sexual é pior do que as outras formas. No meu ponto de vista, ela é diferente, devido à forma como a sociedade a encara, sendo menos tolerada por estar ligada a tabus referentes à sexualidade e ao corpo.
As famílias apresentam certas resistências em compreender que a criança não necessariamente vai sentir a violência sexual como algo ruim, porque ela pode estar envolvida na situação de forma muito sedutora, pode ter uma relação de afeto entre a criança e o agressor, e nem sempre ser realizada de forma violenta. A criança não tem maturidade para entender o que significa escolher ter atos sexuais com um adulto e, dessa maneira, ela não pode ser considerada responsável pelo abuso, ainda que, de alguma maneira, ela tenha aceitado, pois é o adulto quem deveria ter a maturidade suficiente para limitar a relação entre ele e a criança.
Com essa forma de violência, a criança sente-se muito confusa em relação à sua própria sexualidade e pode acabar reproduzindo os atos sexuais com outras crianças. Existe sexualidade na criança e está em construção. Ela não se restringe ao ato sexual em si, mas está relacionada à busca do prazer e afetividade, e ainda das possibilidades de interações sociais e da formação da autoimagem, ou seja, como ela se vê, sua autoestima, sua segurança em si própria.
Na criança, isso vem como uma maneira de ela procurar ter prazer não com o toque erotizado, mas com o afeto e, ao sofrer violência sexual, a distorção que pode ocorrer é ela achar que uma maneira de carinho se dá pelo toque erotizado, algo que, na verdade, somente ocorre a partir da adolescência, quando o corpo e a mente estão se preparando para a possibilidade de um contato erótico. Ressalto que, se o responsável não buscar cuidado para a violência, dá a autorização para as crianças reproduzirem-na, pois elas a aprendem do adulto.
Julgo extremamente necessário criar espaços e ferramentas para dar atendimento ao agressor e quebrar esse ciclo de violência. Isso pode ser por reflexões e orientações tanto com os pacientes como com a sociedade. Atualmente realizo atendimentos psicológicos com homens agressores e também mulheres. Nestes anos de trabalho e estudos, foi possível observar que a maioria dessas pessoas viveu algum tipo de violência na infância ou adolescência. Repetem, na vida adulta, o que sofreram.
A pergunta que sempre trago para o grupo de responsáveis das crianças e adolescentes, no intuito de se fazer refletir e ampliar o olhar, é: a penalização do agressor é suficiente para cuidar da violência? A maioria, com sentimentos aflorados, tende a responder com ódio que sim e, nesse momento, acaba por ser um espaço de canalização e reflexão desses sentimentos.
Penso que a responsabilização é apenas uma parte, uma vez que, em nossa sociedade, a violência sexual é um crime, e a punição para isso é a privação da liberdade. Acredito ser importante, em certa medida, pois diz para a pessoa que ela não pode fazer aquilo. Mas é preciso também entender os motivos que levaram o agressor a não enxergar que existia uma hierarquia entre ele e a criança. Geralmente são pessoas que têm uma sexualidade infantil e que se enxergam de igual para igual em relação à criança, e isso precisa ser cuidado em um espaço especializado.
A mídia trata esse problema como um horror, dizendo que pedofilia é crime. O crime é todo e qualquer ato de cunho sexual realizado contra criança ou adolescente. Pedofilia é uma doença que consiste no desejo sexual do adulto pela criança e que, se concretizar no ato, aí sim, passa a ser crime.
O “Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes”, 18 de maio, instituído pela Lei Federal 9.970/00, é uma conquista que demarca a luta pelos direitos humanos de crianças e adolescentes no Brasil, e que já alcançou muitos municípios do nosso país. Possamos, juntos, refletir sobre uma totalidade sobre as violências. Se não conseguirmos criar ferramentas e estratégias de cuidado para com esse agressor ou agressora, o ciclo da violência não findará, pois a repetição estará presente entre nós.
Sahara Santos
Psicóloga e pós-graduanda em Psicoterapias Junguiana pela Universidade Paulista. Integra a equipe do Instituto Herdeiros do Futuro, no Serviço de Proteção Social às Crianças e Adolescentes Vítimas de Violência. Compõe a equipe do Instituto Inova e Construindo Novos Valores, e é integrante do grupo de estudos e supervisão no Instituto Sedes Sapientiae, sobre agressores, conduzido por Rose Miyahara.