“Um buraco sob meus pés.” Foi assim que, por incontáveis vezes, ouvi pacientes descreverem o momento exato em que receberam a notícia de diagnóstico de um câncer. De imediato, o indivíduo rompe com suas convicções até então consolidadas e automaticamente se conecta a uma série de tabus e estigmas que o câncer carrega consigo, principalmente a de estar sentenciado à morte.
O medo da morte se apresenta em diferentes facetas. O medo da morte pode conter o medo da solidão, da separação de quem se ama; o medo do desconhecido, da interrupção de planos e sonhos; o medo do que pode acontecer aos que ficam; e, numa visão espiritual, medo do julgamento de seus atos em vida, dependendo de suas concepções religiosas. Cada pessoa teme mais de um aspecto da morte, e isso depende de características intrínsecas ao indivíduo que a enfrenta, seja ele quem esteja morrendo ou uma pessoa a quem estima (Kovács, 1992).
Apesar de a notícia carregar o luto pela perda da condição do eu saudável expresso em um intenso sofrimento, a vivência do diagnóstico e tratamento implica em representações totalmente diferentes para cada indivíduo. O impacto não será exclusivo de quem a recebe, mas para todo o seu sistema familiar, exigindo uma reestruturação de planos de todos os envolvidos. É um momento permeado por muito medo da dor, insegurança e muita incerteza. Sentimentos estes, e tantos outros, que raras vezes abandonarão o indivíduo no decorrer de todo o tratamento.
A Psicologia, diante da complexidade das demandas emocionais de um paciente oncológico, terá como prioridade a qualidade de vida deste, mas não a terá como exclusividade. É preciso participar ativamente do processo de aceitação e entendimento de todo o caminho que se percorrerá ao longo do tratamento, ajudar para que tenha a percepção acerca de seus recursos internos e estratégias para atenuar o sofrimento, favorecendo o desenvolvimento do conhecimento de suas dimensões psicológicas, sociais e espirituais. É preciso buscar o equilíbrio entre sua condição vulnerável e o gerenciamento de suas emoções adquirindo novas habilidades por meio do estímulo de autonomia e participação ativa diante do tratamento, tornando o indivíduo participativo e apropriado de todo o percurso.
Embora o câncer tenha uma forte relação com a ideia de iminência de morte, é preciso favorecer o desenvolvimento de novos significados para o processo mais importante que ocorre no momento: o de viver. Falar sobre a relação e a perspectiva de vida não significa negligenciar a tomada de consciência da proximidade de morte, ao contrário, ao deparar-se com a possibilidade real de finitude, o indivíduo, muitas vezes, é levado a uma reflexão existencial, revendo suas prioridades e ressignificando os valores de sua existência, despertando, em alguns momentos, para o seu desenvolvimento e fortalecimento espiritual.
Quando percebemos um indivíduo doente, ele está adoecido em sua totalidade. Não é possível presenciar apenas um corpo doente. É preciso desfocar da doença que tem e considerar toda a sua história de vida, possibilitando uma melhor compreensão da manifestação dos sentimentos relacionados à representação da doença para aquele indivíduo.
Ao buscar o desenvolvimento de estratégias de enfrentamento da doença em conjunto com o indivíduo, a abordagem espiritual passa a exercer um papel importante no tratamento. Embora existam fases em que ocorram sentimentos de revolta, tristeza e até mesmo uma sensação de desamparo, os indivíduos tendem a buscar uma aproximação com seus valores e crenças para alívio de dores, perdas e enfrentamento de situações inesperadas.
A espiritualidade relaciona a busca por significado e sentido para o adoecimento e sofrimento. Percebe-se a força para a superação, permeada por uma sensação de alívio, coragem e maior aceitação diante das adversidades. Boa parte dos pacientes que vivenciam o câncer demonstram acreditar que sua espiritualidade alimenta a motivação para o enfrentamento ao longo do tratamento.
Assim como a espiritualidade, a fé se mostra uma fonte de apoio para conseguir encarar os desafios provocados pelos tratamentos ou até mesmo na possibilidade de conforto diante da proximidade de morte. A fé passa a ser um instrumento não somente para o paciente, mas para a sua família, mantendo uma postura mais positiva diante de todo o sofrimento implicado pela condição da doença.
Busca-se, então, não somente o desenvolvimento da espiritualidade do paciente, mas um cuidado pautado naquilo que caracteriza a espiritualidade: humanizar, ouvir, fazer-se presente na dor, sofrimento ou solidão. É acalentar, consolar, flexibilizar e apoiar. Cuidar espiritualmente significa trabalhar com a esperança de cura física, mas se isso não for possível, de reestruturação e resiliência emocional. Cuidar não deve ser um ato técnico e objetivo, estruturado em etapas, procedimentos e técnicas, mas sim uma oportunidade de conduzir seres humanos para melhores direções existenciais. Valorizar constantemente o processo do outro no encontro consigo mesmo e com sua própria finitude.
A experiência do adoecer pode se configurar como um acontecimento repleto de sentido, bem como um ganho existencial, pois, quando o homem encontra um sentido para seguir adiante, apesar dos obstáculos inerentes à vida, pode transcender as dificuldades imediatas impostas pelas circunstâncias adversas. Até mesmo na morte o sentido da vida se satisfaz, mobilizado pela ameaça da morte iminente e, consequentemente, pela luta desencadeada em prol da afirmação da vida ao se buscar o sentido da morte e do morrer, contribuindo para enriquecer esse processo com um sentido pleno ante a existência humana (Viktor Frankl).
Referências
Frankl, V. E. (2003). Psicoterapia e sentido da vida. Quadrante.
Kovács, M. J. (1992). Morte e desenvolvimento humano. Casa do Psicólogo.
Fernanda Heming Souza Monteiro
Psicóloga Clínica e da Saúde, especialista em Oncologia e Hematologia, Porto Alegre-RS.