A diáspora dos povos africanos, vivida de maneira traumática há 350 anos, desde a rota escravagista em direção às Américas, atingiu uma etapa crucial para os rumos da história em 2020. Este é o momento em que as populações afro-americanas se organizam em torno de uma agenda reivindicatória contra a violência policial, em favor de medidas reparadoras para acesso ao mercado de trabalho e por uma saúde que barre a dizimação do povo negro pela covid-19 nas periferias do mundo.
Talvez surpreendendo seus pares, a historiadora Lilia Schwarcz chegou a publicar que este é o “verdadeiro ano em que estamos terminando o século XX e iniciando o XXI”,1 tamanhos são os impactos sentidos nas pressões sociais pelo fim de privilégios salvaguardados em estruturas de poder excludentes.
No Brasil, um dos gestos concretos de inconformismo com a sociedade da exclusão poderá terminar em uma representação junto ao Supremo Tribunal Federal (STF). Em setembro, a Educafro, uma das organizações mais representativas do movimento antirracista e pioneira na defesa das cotas raciais nas universidades, enviou carta à Bolsa de Valores de São Paulo, questionando o fato de que as empresas ingressantes na chamada B3 não assumiam nenhum compromisso em favor da inclusão racial e de gênero, como explica o diretor executivo da Educafro, frei Davi Santos:
“Toda empresa é obrigada a cumprir uma série de regras para ter suas ações negociadas no mercado de capitais. Porém, curiosamente, a Bolsa de Valores, fundada logo depois da Abolição da Escravatura, em 1890, não tem nenhuma regra que estabeleça a prática de políticas de inclusão dos mais pobres como condição para que as empresas operem na B3.”
Até agora, passados mais de dois meses em que a carta foi protocolada, a Educafro ainda aguarda o posicionamento da Bolsa de Valores.
Neste mês em que se comemora o Dia Nacional da Consciência Negra, mesmo sem o feriado, “retirado” pela Prefeitura de São Paulo, que o antecipou para maio, a Educafro poderá entrar com uma ação de inconstitucionalidade no STF, contra a Bolsa de Valores.
“A instituição, que é uma concessionária do direito de explorar o mercado de capitais, não cumpre o artigo 192 da Constituição brasileira”, afirma frei Davi. “Este artigo assinala que é obrigação do sistema financeiro promover o desenvolvimento equilibrado do país e servir aos interesses da coletividade.”
Na carta endereçada à B3, uma das reivindicações da Educafro, em sintonia com as vozes do Movimento Negro, tem grande potencial para mexer com a lógica do mercado no Brasil: a entidade quer criar o “índice de equidade racial e de gênero” que dê visibilidade às empresas com maior comprometimento com esses temas.
Para frei Davi, a luta é contra o racismo estrutural que também está enraizado no mercado de ações. Não por acaso, a designação de “racismo estrutural” é uma das mais recorrentes nos turbulentos tempos em que vivemos. É também o título do livro do filósofo Silvio Luiz de Almeida.2
Silvio define o racismo estrutural como um fenômeno sistêmico, entranhado às estruturas do poder, que atinge somente grupos étnico-raciais subalternizados. No racismo estrutural, a cor da pele e as práticas culturais são dispositivos materiais para gerar privilégios, vantagens políticas, econômicas e afetivas em favor do grupo hegemônico.
As demissões seletivas de negros durante a pandemia é um exemplo de racismo estrutural, como lembra frei Davi: “As empresas começaram a onda de demissões pelos empregados negros. Recebemos dezenas de denúncias nesse sentido”.
O fundador da Educafro pede mais atenção por parte da Igreja, “para que coloque em prática o vigor da proposta do Deus Criador, que é o vigor da integração, do acolhimento e da valorização de todo ser humano, sem distinção de cor, classe social e aparência”.
1 SCHWARCZ, Lilia Moritz. Quando acaba o século XX. São Paulo: Companhia das Letras, 2020. E-book gratuito disponível em https://www.blogdacompanhia.com.br/conteudos/visualizar/E-book-gratuito-Quando-acaba-o-seculo-XX-de-Lilia-Moritz-Schwarcz
2 ALMEIDA, Silvio Luiz de. O que é racismo estrutural. Belo Horizonte: Letramento, 2018. (Coleção Feminismos Plurais.)
José Manoel Rodrigues é jornalista e educomunicador.