Este ano, pela primeira vez, 20 de novembro é feriado em todo o território brasileiro, como Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra. Foram seis anos de trâmites entre a sugestão feita por meio do projeto de lei do senador Randolfe Rodrigues, em 2017, até a sanção do texto final pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em dezembro de 2023. Até então, somente cinco Estados e mais de mil Municípios haviam instituído a data como feriado em seus calendários.
A escolha do 20 de novembro, porém, remete a um intervalo ainda maior: 53 anos. Foi em 1971, em Porto Alegre-RS, que um grupo de jovens negros estabeleceu a data de morte de Zumbi dos Palmares, líder do maior quilombo do Brasil colonial, em contraponto ao 13 de maio de 1888, da assinatura da Lei Áurea pela princesa Isabel, como referência de celebração do povo negro. A intenção era valorizar a história dos antepassados e o protagonismo da luta dos ex-escravizados por liberdade, além de abrir reflexões para as questões raciais.
Entre os jovens daquele grupo porto-alegrense, estavam Antônio Carlos Côrtes, Oliveira Silveira, Ilmo da Silva, Vilmar Nunes, Jorge Antônio dos Santos (Jorge Xangô) e Luiz Paulo Assis Santos. Em matéria especial da Agência Senado, de 2021, pelo cinquentenário do 20 de novembro, Antônio Carlos Côrtes declarou:
“O Dia da Consciência Negra transformado em feriado não é simplesmente pelo feriado em si, mas sim pela reflexão e pela reparação da dívida que o Brasil, como nação, tem com a comunidade negra. As políticas afirmativas são apenas uma breve reparação. Somos a maioria da população brasileira, mas não estamos representados nas câmaras de vereadores, nas assembleias legislativas, na Câmara Federal, no Senado, no Executivo, assim como nas empresas. A luta começa agora.”
Educação antirracista
Também é recente o tempo em que o 20 de novembro integra o calendário escolar: 22 anos. O Dia Nacional da Consciência Negra foi instituído a partir da Lei 10.639, de 2003, que tornou obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira nos currículos dos ensinos fundamental e médio. Para a professora mestra, Ádria Paulino, que estudou e lecionou no Colégio Espírito Santo, de Canoas-RS, é necessário que a comunidade docente se engaje nesse propósito e no cumprimento da Lei 10.639/2003.
“Que não caiamos na cilada de frases prontas de efeito e que saibamos que a luta antirracista inicia no reconhecimento das identidades plurais que nos rodeiam, não desvalorizando o que foge dos conceitos eurocêntricos. Também é necessário dar contexto histórico dos assuntos trabalhados e que toda a beleza e cultura de um continente não seja vista como uma coisa só. São e somos diversos”, afirma.
Nesse sentido, Ádria reforça que a cultura negra jamais deve estar atrelada apenas à passagem de um dia ou mês comemorativo. “Ou sempre atrelada às mazelas do povo escravizado. É de suma importância que ela faça parte do cotidiano, em todos os âmbitos e currículos da escola, que ela esteja presente de maneira afirmativa e empoderada, e que todos os nossos alunos reconheçam a enorme contribuição que o continente e o povo africano trouxeram na formação de nosso País”, complementa a professora.
Arte como expressão e formação de identidades
Professora de Educação Física e Dança, Ádria Paulino transmite, em movimento, o aprendizado e a cultura afro a seus alunos. À frente do Identidades Grupo de Dança, atividade extracurricular de danças urbanas, atuante desde 2006 no Colégio Espírito Santo, ela promove o pensamento sobre a diversidade de identidades em um trabalho coletivo em prol da dança-educação.
“Pensar no Dia da Consciência Negra, para nós, não é algo que se alinha apenas durante as festividades do mês de novembro. Não só pelo grupo ter suas lideranças negras, mas pelo compromisso ético de trazer ao conhecimento de seus alunos-dançantes a historicidade da arte que praticam”, salienta.
O conceito-base do Identidades Grupo de Dança está na frase: “Eu sou porque nós somos”, uma expressão da filosofia africana “Ubuntu”, do idioma zulu e xhosa, falado por povos da África Subsaariana e que inspirou grandes ativistas pelos direitos humanos como Nelson Mandela. “Uma pessoa com Ubuntu tem consciência de que todos somos parte de um coletivo e que todos somos afetados quando um semelhante é diminuído ou oprimido”, explica Ádria.
Cultura e referências no palco
De uma maneira bem resumida, Ádria Paulino conta que as danças urbanas são um estilo oriundo nos bairros negros e latinos da cidade de Nova Iorque (Estados Unidos), na década de 1960, e que, no movimento diaspórico, também chega ao Brasil em meados dos anos 1980, tendo como grandes nomes Nelson Triunfo e Thaíde. As danças urbanas, especificamente o break dancing, formam um dos pilares do Movimento Hip-Hop, juntamente com a música rap, os DJs e a arte do grafite, tendo como valor refletir a realidade social. “Dentro dessa premissa, buscamos, através da nossa dança, fazer com que nossos jovens e crianças sejam cidadãos críticos e conscientes da sociedade em que vivem e do meio que os permeiam”, destaca a professora.
O ápice do trabalho do Identidades é o “Festdança”, evento que finaliza as atividades do grupo a cada ano. Em 2024, ocorre a 19ª edição. “Sempre escolhemos uma temática para abordar a cada ano e, a partir disso, construímos um espetáculo que emociona e potencializa questões sociais. A cultura negra se insere através da arte, da música e da dança, além de passagens históricas para o movimento negro, que são representadas”, comenta Ádria.
Um exemplo disso se deu em 2018, quando o espetáculo buscou referências em grandes filmes do cinema. Uma das coreografias que levaram o protagonismo preto para o centro do palco foi inspirada em “Selma: uma luta pela igualdade”, filme que conta a luta para garantir o direito de voto dos negros estadunidenses. “Em outra edição, entoamos o grande sucesso da cantora Sandra de Sá, ‘Olhos Coloridos’, que é um hino dos anos 1980 e que traz consigo a afirmação da identidade negra, além de conscientizar acerca do racismo, que está presente em nossa sociedade até os dias de hoje”, relembra Ádria.
Para saber mais
BAPTISTA, Rodrigo. Dia da Consciência Negra, 50 anos: liberdade conquistada, não concedida. Agência Senado, Brasília, 18 nov. 2021. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/infomaterias/2021/11/dia-da-consciencia-negra-50-anos-liberdade-conquistada-nao-concedida. Acesso em: 13 nov. 2024.
Jornalista no Colégio Espírito Santo, em Canoas-RS, e membro da Equipe de Comunicação SSpS Brasil.