Contemplar a Cruz e socorrer os crucificados

A Igreja celebra a Festa da Exaltação da Santa Cruz em 14 de setembro. Até a reforma do calendário litúrgico determinada pelo Concílio Vaticano II (1962-1965), era celebrada em 3 de maio, com o nome de “Invenção” da Santa Cruz, recordando a “descoberta” da Vera (verdadeira) Cruz por Santa Helena, em 337. Alguns lugares de nosso País preservam a antiga data, sobretudo onde a dulcíssima fé popular se destaca. De qualquer forma, é uma oportunidade para meditarmos um pouco sobre o que representa a Cruz para nós, cristãos.

Por motivações diferentes, vez ou outra, os crucifixos são deixados de lado, tanto em ambientes laicos quanto, espantosamente, nos sagrados. Esse esconder o crucificado pode ter um sentido bem mais grave, dramático até, do que apenas questões de gosto estético ou arroubos modistas.

A Cruz começou a ser usada como símbolo cristão mais difuso a partir do século III. No tempo de Jesus, a pena de crucificação era a mais grave do Império Romano e causava enorme comoção. Costumava ser reservada a criminosos mais contumazes e presos políticos (como Jesus), demonstrando força e desprezo ao condenado, intimidando os mais atrevidos. Segundo antigos registros, os carrascos que executavam o sentenciado quase sempre eram os mais experientes, tal era o horror da cena. Os primeiros cristãos, portanto, tinham boas justificativas para terem pavor desse instrumento.

Na 1ª Carta aos Coríntios (1,23), contudo, São Paulo afirma que ele e os outros evangelizadores pregavam Cristo crucificado, “escândalo para os judeus e loucura para os pagãos”. Ele se referia ao verdadeiro Messias, não ao “general” esperado pelo povo, mas, conforme o próprio Cristo, aquele que “devia sofrer muito, ser rejeitado pelos anciãos, pelos sumos sacerdotes e doutores da Lei; devia ser morto e ressuscitar depois de três dias” (Marcos 8,31). Em tempos de pregações sobre busca de “prosperidade”, sucesso, “vitória”, as palavras de Paulo e do próprio Cristo devem ser bem incômodas para algumas “seitas” dentro e fora do catolicismo.

Tirar o Crucificado diante dos olhos pode nos levar a uma religião alienada ou ingênua. Ouso aconselhar que todo batizado passe algum tempo contemplando a Cruz. É impressionante e até constrangedor ver que nosso Deus, nosso Mestre, nosso Pastor não aparece numa ilha tropical, num iate, num camarote ou desfilando sobre um elegante e badalado tapete vermelho. Em nosso batismo, fomos enxertados primeiramente nesse Cristo que passou pela experiência da humilhação, da dor, para, depois, ser ressuscitado pelo Pai.

Mirar com atenção a Cruz é um gesto piíssimo, mas exigente. O corpo nu, sujo e ensanguentado do Senhor é o sacramento dos muitos crucificados, alguns bem perto de nós. Essa contemplação precisa abrir nossos olhos e nosso espírito aos pobres, aos enfermos, aos fracos, aos desempregados, às mulheres agredidas, às crianças, aos sem acesso à escola, segurança e saúde, aos “lascados” de nossa sociedade. Ignorar a Cruz, substituindo-a por uma imagem de Jesus que parece sair do banho, pode levar a Igreja a distrair-se da missão e jogar para debaixo do tapete os sofredores, os crucificados de nosso tempo. Celebra-se uma barulhenta ressurreição que não passa pelo Calvário.

Uma comunidade que verdadeiramente se configura a Jesus pode apropriar-se das palavras de Paulo: “Com Cristo, eu fui pregado na cruz. Eu vivo, mas não eu, é Cristo que vive em mim” (Gálatas 2,19b-20a). Que bom seria se todos nós pudéssemos pelo menos tentar fazer o Cristo (que passou pela Cruz, reforço), viver em nós. Um fiel, uma família, uma Igreja que tem diante de si a Cruz pode louvar, com toda a dignidade, a Jesus, de cujo peito aberto jorrou a água que nos batiza e o sangue que nos embriaga de alegria e vida. Sem a Cruz, nosso olhar de fé é embaçado.

Outra lição da Cruz é a do sacrifício. Quanta gente quer obter o sucesso sem passar pelo esforço, quer ir logo para o Domingo da Ressurreição, ignorando a Sexta-Feira Santa! Daí surgem a corrupção, os golpes, os roubos, o abuso contra o outro. A tão esperada e cantada “vitória que Deus guardou para mim” pede empenho. Horas de estudo e de trabalho, superação de obstáculos, tentativas mil, recuos e avanços, investimento, paciência e muita oração.

Que o Senhor Crucificado seja de novo exposto em nossos lares, em nossos locais de trabalho e em nossas igrejas. Ao contemplar nosso silencioso Mestre, o Salvador ferido, de cabeça inclinada e de olhos fechados, talvez entenderemos a lição do Santo Madeiro. Poderemos, assim, exaltar a Verdadeira Cruz ao longo de todo o ano e obedecer às palavras de Jesus: “Se alguém me quer seguir, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e me siga” (Marcos 8,34b).

Alessandro Faleiro Marques
Diácono permanente na Arquidiocese de Belo Horizonte, professor, editor de textos para as irmãs missionárias servas do Espírito Santo.

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