Como preâmbulo desta reflexão sobre a temática do negro na sociedade contemporânea e os desafios que dela fazem parte, gostaria de acenar o primeiro passo para que o negro possa ocupar seu lugar na sociedade brasileira, como qualquer outro ser humano ou qualquer outra cultura: é necessário que o Brasil se reconheça como um país racista. Sem esse passo fundamental, falaremos e agiremos às apalpadelas, impossibilitados de encontrar nenhuma luz ao fim do túnel.
Por que o Brasil é um país racista?
As raízes do racismo se encontram cravadas no colonialismo que implantou a escravidão negra no Brasil. Nele se origina a não aceitação do negro como pessoa, explicitada e confirmada pelos atos macabros de inferiorização do negro, reduzindo-o a animal sem razão, impondo-lhe cabrestos, imobilizando-o em troncos, metendo-lhe garganta abaixo litros e litros de água fervente. Recordemos o que nos registrou a história da escravidão no Brasil, história negada nos livros, desde a educação infantil à universidade: após a independência de Portugal, em 1822, uma das primeiras medidas do governo brasileiro foi proibir que alunos negros frequentassem as mesmas escolas que os brancos. Um dos motivos apontados era o temor de que eles pudessem transmitir doenças contagiosas. A lista das origens do racismo no Brasil advindas do colonialismo é quilométrica.
Porém, a sociedade brasileira, longe de uma compreensão clara da história, porque negada, mantém atitudes veladas ou claras de não aceitação do negro, impossibilitando-o de uma ascensão, intimando-o a uma condição se subalternidade, relegando-o à marginalidade.
Onde está o negro, a negra na sociedade brasileira?
Essa é a pergunta que constantemente me faço quando entro nas escolas e universidades particulares, nos restaurantes da classe média e nos cinemas. Eles não se encontram ali. Onde se encontram? Escondidos nos serviços desses mesmos estabelecimentos, lavando, limpando, cozinhando. Invisíveis. Aliás, visíveis de acordo com a conveniência do sistema.
Explico-me: almoçando com uns amigos nas redondezas de Perdizes, bairro nobre de São Paulo, de dentro das dependências, assistíamos a uma cena de discriminação da polícia com um motoboy que entrou na contramão. Em um minuto, apareceram cinco viaturas para gerar uma multa a um pobre trabalhador negro que entrou por engano no contrafluxo.
Ao ser liberado e enviesado pelos olhares que saíam do restaurante, seu semblante triste e humilhado me partiu o coração. Era conveniente para a polícia mostrar à elite que estava trabalhando, escorraçando com negros trabalhadores, para manter a pose da elite paulista.
Sentada ali, juntos aos brancos, perguntando-me onde estariam, naquele momento, meus irmãos e irmãs negras, os olhares que vão e vem me informavam que eu não deveria estar ali. E me impondo, respondi com meu olhar resistente que ali era que todos deveríamos estar, juntos, numa festa de cores, ao verdadeiro molde de Brasil, como de fato é: um país rico em cores, em diversidade cultural.
Eu conceituo o racismo à brasileira, o pior que possa existir. Velado, dia a dia, mina a autoafirmação do negro, sobre o que falaremos mais adiante. Para o jornalista do Portal Senado, Ricardo Westin, o racismo é desastroso para as populações negras. Ele vai muito além do fato narrado acima. Ele se manifesta de formas menos gritantes, mas produz efeitos devastadores na vida do negro. “Em qualquer aspecto da vida, os pretos e os pardos (grupos que o IBGE classifica como negros) estão sempre em franca desvantagem na comparação com os brancos”, considera.
“No Brasil, ser negro significa ser mais pobre do que o branco, ter menos escolaridade, receber salário menor, ser mais rejeitado pelo mercado de trabalho, ter menos oportunidades de ascensão profissional e social, dificilmente chegar à cúpula do Poder Público e aos postos de comando da iniciativa privada, estar entre os principais ocupantes dos subempregos, ter menos acesso aos serviços de saúde, ser vítima preferencial da violência urbana, ter mais chances de ir para a prisão, morrer mais cedo”, afirma.
Como enfrentar o racismo à brasileira?
Aqui, deixo preciosa colaboração do psiquiatra negro, martinicano, Frantz Fanon, para a resposta cotidiana, eficiente e eficaz que o negro deve dar para enfrentar e lutar contra o racismo. Fanon (lê-se Fênon) foi um pensador, filósofo e psiquiatra negro nascido em Martinica.
Ao viajar à França pela primeira vez, levou um choque de realidade. Considerando-se francês, ou ao menos à altura destes, por suas possibilidades e oportunidades, deparou-se com uma cena que colocou seus pés no chão. Uma criança, ao vê-lo nas ruas de Paris, gritou de medo: “Mamãe, olhe o negro, estou com medo, mamãe…”. A partir daquele momento, a vida de Fanon virou do avesso. Dedicou o resto de sua vida a compreender os efeitos do colonialismo na vida das pessoas negras. Faleceu aos 36 anos, deixando obras preciosíssimas como “Os condenados da terra”, “Pele negra, máscaras brancas”, “Alienação e liberdade”, “Revolução africana, dentre outros”.
Fanon sugere que, para vencer o racismo, faz-se necessário tirar as máscaras brancas que o negro sempre usou diante do branco. Como? Assumindo-se, autoafirmando-se. Essa sugestão eu a traduzo assim: mostre seu cabelo, seu penteado africano. Seja você, orgulhe-se de si mesmo. Estude. Empodere-se. Afirme e confirme a cor de sua pele. Trate bem sua pele. Mostre-a linda e saudável. Cuide-se. Imponha-se.
Sem dúvida, não se vencerá o racismo apenas com essas atitudes, mas elas são o começo de uma nova história. O governo, o país todo precisa entender-se como racista para mudar. A negação, ressalta Westin, “É essencial para a continuidade do racismo”, porque somente assim ele conseguirá se reproduzir e permanecer, como também continuar a ser naturalizado e incorporado no dia a dia.
Por isso o Dia da Consciência Negra (celebrado no dia em que se comemora a morte de Zumbi dos Palmares, data tão mal compreendida por aqueles que se dizem não racistas), quer ser, exatamente uma oportunidade para o Brasil olhar para si mesmo, perceber sua verdadeira face e buscar um caminho novo em relação à maioria da população brasileira, 53% dela negros e negras. Um dia que precisa ser compreendido como necessário para exterminar de vez esse mal que continua dizimando as populações negras deste país, que, diga-se, foi construído à custa do sangue de tantos e tantas mártires negros e negras.
Rosa M. Martins
Mestra em Jornalismo, Imagem e Entretenimento pela Fundação Cásper Líbero, licenciada em Filosofia pela Universidade Salesiana de Lorena (Unisal), bacharela em Teologia pela Pontifícia Universidade São Boaventura de Roma. É missionária scalabriniana e vive em Santo André-SP. Indicada ao Prêmio Tarso Genro de Jornalismo em 2020, foi vencedora do Prêmio Papa Francisco, categoria mestrado, do Prêmio CNBB de Comunicação com a dissertação “Menores estrangeiros não acompanhados: uma análise da representação no fotojornalismo italiano”, em 2021.