“Bendito aquele que vem em nome do Senhor!”
Lucas 19,29-40
(Como seria impossível fazer jus ao Evangelho da Paixão em uma reflexão tão curta, refletiremos sobre o Evangelho da procissão.)
Quase não há comunidade católica no Brasil que não comemore hoje, com muita alegria, a entrada de Jesus em Jerusalém. São organizadas procissões, o povo abana ramos, celebram-se encenações do evento. Pessoas que dificilmente pisam em uma igreja nos domingos comuns fazem questão de não perder a procissão hoje. Porém, para não reduzirmos a comemoração a mero folclore, é importante estudar o que significava esse evento para Jesus e para o evangelista.
Dificulta nosso entendimento da passagem nossa pouca familiaridade com o Antigo Testamento. Cumpre relembrar um trecho do profeta Zacarias (9,9-10): “Dance de alegria, cidade de Sião; grite de alegria, cidade de Jerusalém, pois agora seu rei está chegando, justo e vitorioso. Ele é pobre, vem montado num jumento, num jumentinho, filho duma jumenta… Anunciará a paz a todas as nações, e o seu domínio irá de mar a mar, do rio Eufrates até os confins da terra”. Esse era um trecho muito importante na espiritualidade do grupo conhecido como “os pobres de Javé”, que esperavam a chegada do Messias libertador. Nesse grupo, encontravam-se Maria, José e os discípulos de Jesus. Foi dentro dessa espiritualidade que Jesus foi criado.
Zacarias traçava as características do messias: seria um rei “justo e pobre”, não de guerra, mas de paz. Viria estabelecer uma sociedade diferente da sociedade opressora do tempo de Zacarias (e de Jesus, e nosso), em que os poderosos e violentos oprimiam os pobres e pacíficos. Seria uma sociedade na qual, entre outros elementos, a economia estaria a serviço da vida.
Um rei jamais entraria numa cidade montado em um jumento, o animal do pobre camponês, mas num cavalo branco, de raça. Jesus, entrando assim, fez uma releitura de Zacarias e se identificou com o rei pobre, da paz, da esperança dos pobres e oprimidos.
Por isso, muitas vezes, perdemos totalmente o sentido da entrada de Jesus em Jerusalém. Celebramos o evento como se fosse a entrada de um governante de nossos tempos: com pompa, imponência e demonstração de poder e força. Na verdade, houve uma procissão assim em Jerusalém, no mesmo dia da entrada de Jesus: a entrada do procurador romano Pôncio Pilatos, com toda a pompa, chegando de Cesareia Marítima, com uns cinco mil soldados, para ostentar o poder repressor do Império. À tarde, pela porta oriental, Jesus fez o contrário. Entrou como o Servo de Javé, na simplicidade que é própria de Deus e de seus enviados. Chamamos o evento da “entrada triunfal de Jesus”, e realmente o foi, mas como triunfo do Deus que se encarnou entre nós como o Servo Sofredor. Nada mais longe do sentido original desse evento do que manifestações de poderio e pompa, mesmo (ou especialmente) quando feitas em nome da Igreja e do Evangelho de Jesus.
O poder e a pompa seduzem. Devemos ficar eternamente gratos ao Papa Bento XVI pelo desapego que ele demonstrou em renunciar, pelo bem da Igreja. Uma atitude digna de um verdadeiro discípulo do Mestre do Domingo de Ramos.
O texto convida todos nós a revermos nossas atitudes. Seguimos Jesus, mas será que é o Jesus real, o Jesus de Nazaré, o Jesus rei dos pobres e humildes, o Jesus cumpridor da profecia de Zacarias? Ou inventamos outro Jesus: poderoso nos moldes de nossa sociedade, com força, poder e prestígio, conforme o mundo entende esses termos?
Aquela semana foi o ponto culminante de toda a vida e missão de Jesus, de suas opções concretas em favor dos oprimidos, de seu desafio à religião oficial que escondia o verdadeiro rosto de Deus, das consequências políticas e econômicas de sua proposta de uma sociedade justa e igualitária, manifestação concreta da chegada do Reino de Deus. Tudo isso levou os poderosos, romanos e judeus, a tramarem sua morte.
É importante lembrar que a paixão e morte de Jesus foram consequência de sua vida. É impossível entender o que significa a Semana Santa sem a ligar com o resto da vida de Jesus e com sua proposta para a sociedade e para seus seguidores. Jesus não morreu, mas foi morto porque incomodava, como continua a incomodar, ainda hoje, os que mantêm o sistema opressor, que é a expressão do antirreino, mesmo quando disfarçado com discurso religioso, como se fazia no Templo.
Adverte-nos um canto usado nas celebrações de hoje: “Eles queriam um grande rei, que fosse forte, dominador. E por isso não creram nele e mataram o Salvador”. Realmente acreditamos no rei dos pobres e oprimidos ou apenas fazemos um folclore no Dia de Ramos, bonito, mas totalmente desvinculado da mensagem verídica e profunda do profeta Zacarias e do Evangelho de hoje?
Padre Tomaz Hughes, SVD, biblista e assessor da CRB e do Cebi. Dedicou-se a cursos e retiros bíblicos em todo o Brasil. Publicou diversos artigos e o livro “Paulo de Tarso: discípulo-missionário de Jesus”. Faleceu em 15 de maio de 2017. Suas reflexões bíblicas são muito atuais.