Dulce dos Pobres, a CF 2020, o coronavírus e o povo da rua…

Aproxima-se a Semana Santa. Tempo privilegiado para passar a limpo nossos planos individuais, mas também as ações conjuntas da sociedade, os projetos de governo e seus resultados. Mais do que nunca, o critério de juízo proposto por Jesus, de que “pelos frutos se conhece a árvore”, recai sobre nós, em terra brasileira e ao redor do mundo. Só não vê quem não quer.

A plenitude do Paraíso que Jesus nos entregou com seu sacrifício na Cruz somente se fará presente o dia em que todas e todos tiverem acesso aos bens que o Pai Misericordioso colocou à disposição de cada ser humano e que tem sido negado ou cerceado à maioria dos cidadãos e cidadãs do planeta. A ganância e a cobiça, os joelhos dobrados diante do deus capital fazem deste mundo um “paraíso” para uma minoria e um inferno cotidiano para a maioria.

Um dos ícones que orientou a Campanha da Fraternidade foi nossa querida Santa Dulce dos Pobres. Ninguém mais do que ela foi a samaritana para milhares de pessoas caídas, deixadas ou empurradas à beira do caminho por um sistema que, há mais de 500 anos, amarga a vida de milhões de pessoas em solo brasileiro, especialmente os indígenas (donos primeiros deste território), os afrodescendentes, os ribeirinhos e a maioria empobrecida de nosso País.

De repente, em plena Quaresma, fomos surpreendidos pela pandemia do novo coronavírus, que nos obriga a ficar de quarentena e repensar toda a engrenagem de um sistema no qual o dinheiro vale mais do que a vida humana. Em meio à obsessão por muros, discriminação dos mais pobres, dos migrantes e de todos que almejam a vida digna que Jesus trouxe para todos, aparece um vírus aparentemente frágil que põe em colapso toda a economia mundial e obriga os cidadãos e cidadãs do mundo a se posicionarem: o dinheiro ou a vida.

Pura ironia, o vírus se torna um assaltante que deixa ao descoberto nossos esquemas, nossas hipocrisias e justificativas falaciosas. Os que têm poder de decisão são desmascarados e obrigados a dizer a que vieram, colocando a nu as mentiras e contradições que já não se sustentam diante de tempos futuros que aparentam tão difíceis. Diante do inevitável, todos repetem: jamais seremos os mesmos. Oxalá seja para melhor!

Tentemos buscar algumas lições de Santa Dulce para alavancar a esperança. Algumas coisas se destacam em sua trajetória. A sensibilidade pelos pobres e o profundo senso de justiça vindo do berço. É de casa que sairão os valiosos cidadãos e cidadãs do futuro ou as mentalidades corrompidas e ávidas de poder e dinheiro, que, hoje em dia, grassa por todos os lados.

Em tempos difíceis tudo se torna bem comum e a serviço da vida! Deste senso de justiça nasce uma indignação que se transforma em transgressão. A vida vale mais do que as regras ou disciplinas conventuais. Foi assim que ela mandou um garoto arrombar as portas do Mercado Municipal e lá acomodou as dezenas de doentes que encontrou pela rua. Foi assim que, ao ser despejada pelo prefeito, ela os levou para os arcos da Igreja do Bonfim. De novo despejada pelo Poder Público, ela convenceu a superiora do convento a adaptar o galinheiro para acolher os pacientes. E ainda transformou as galinhas em deliciosa sopa para os novos visitantes. Era claro para irmã Dulce que a vida humana não separa em castas ou classes sociais. A opção de Jesus de “primeiro os últimos” soava como melodia natural no dia a dia de suas ações de misericórdia.

De Salvador da Bahia nos transferimos para a cidade de São Paulo, nos tempos do novo coronavírus. No início de 2019, quando retornei ao Brasil, depois de 12 anos de serviço missionário em Roma, uma das coisas que me chocava ao andar pelo centro da cidade eram os amontoados de pessoas pelas ruas. Parecem montes de lixo! Meu Deus, aonde chegamos! Parece que nada mais nos escandaliza! No último censo de 2020, a Prefeitura da capital paulista admitiu que, pelo menos, 24.344 pessoas estão em situação de rua, das quais 12.651 estão sem abrigo.

O novo coronavírus chegou! Se a ordem é ficar em casa, para onde irão os sem-teto? E agora, quando se fecham os restaurantes, feiras e locais de acesso à alimentação, onde eles comerão? O Papa Francisco, em sua lucidez profética, na manhã do dia 31 de março, da capela da Casa Santa Marta, fez ecoar seu zelo de pastor pelos últimos do Reino: “Rezemos hoje pelos sem-teto, neste momento em que nos é pedido para estar dentro de casa. Para que a sociedade de homens e mulheres se dê conta desta realidade e os ajude, e a Igreja os acolha”.

E nós, que estaremos reclusos em nossas casas, o que podemos fazer? Primeiramente abraçar o lema assumido pelas organizações de apoio à população de rua: “A rua não é um lugar para morar, muito menos para morrer”. A partir das conversas entre as entidades, sugerimos que aproveite este tempo de quarentena para as seguintes ações:

  • monitore e cobre do Poder Público ações de albergamento, alimentação e saúde para a população em situação de rua. A responsabilidade primeira é do Poder Público;
  • se puder e não estiver no grupo de risco, ofereça-se para algum tempo de voluntariado nas centenas de projetos e ações que são realizadas pela cidade;
  • organize campanhas de coleta de roupas, material de higiene, saúde e alimentação, e dirija às entidades mais necessitadas;
  • convoque as famílias a fazer comida e organize grupos-relâmpagos que saia pelos arredores de onde você vive e reparta “marmitex” ou outros alimentos.

Será um jeito diferente e concreto de tornar realidade a Campanha da Fraternidade 2020 (“Viu, sentiu compaixão e cuidou dele!”) em tempos do novo coronavírus. Graças a Deus, qual Dulce samaritana, já existem centenas de grupos, pessoas, comunidades e paróquias realizando esse tipo de ação por nossas cidades.

Arlindo Pereira Dias, SVD
Padre da Congregação do Verbo Divino, coordena o trabalho de Justiça e Paz e Integridade da Criação (JUPIC) em S. Paulo e é mestre em Comunicação Social. Trabalha com moradores de rua pela Rede Rua desde 1989. Foi Provincial (2001 a 2006) e Conselheiro Geral (2006 a 20018). Retornou ao Brasil em 2109.

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