“Não é este o carpinteiro, o filho de Maria…?” (Mc 6,3)
Marcos não começa seu evangelho apresentando a família de Nazaré e a educação do protagonista Jesus; ele começa fazendo referência a João Batista, para relatar depois o que Jesus começou fazendo.
Só agora, depois de apresentar basicamente a mensagem de Jesus, Marcos fala de sua terra e da relação que Ele tem com seus familiares e conterrâneos. Só agora recebemos uma informação mais detalhada do tema, a partir de uma perspectiva polêmica.
O evangelista já havia chamado a atenção da relação de Jesus com seus parentes, em 3,21, quando diz que eles vieram buscá-lo, porque diziam que Ele estava ficando louco.
O relato deste domingo não deixa de ser surpreendente. Jesus foi rejeitado precisamente em seu próprio povoado, entre aqueles que julgavam conhecê-lo melhor que ninguém. Chegou a Nazaré, acompanhado de seus discípulos, ou seja, um mestre que tem seus seguidores fixos; ninguém saiu ao seu encontro para recebê-lo, como acontecia em outros lugares. Também não levaram até Ele seus enfermos para que os curasse. Jesus precisou esperar o sábado para ir à sinagoga e falar-lhes. Não foram à sinagoga para escutá-lo, mas para cumprir o preceito do sábado. É Jesus que, por sua conta e risco, se põe a ensiná-los sem que eles o pedissem.
A presença de Jesus desperta assombro em todos. Não sabem quem lhe ensinou uma mensagem tão cheia de sabedoria; do mesmo modo, não sabem explicar de onde provém a força curadora de suas mãos. A única coisa que sabem é que Jesus é um trabalhador artesão, nascido numa família de sua aldeia. Tudo o mais se revela escandaloso.
Neste retorno à sua terra, Marcos aproveita para apresentar o que poderíamos chamar “o curriculum vitae” de Jesus. Todo o cristianismo posterior depende, de algum modo, deste “curriculum”, onde Jesus aparece como carpinteiro, e não como mestre de obras; também aparece como descendente de uma mulher chamada Maria, dentro de uma família conhecida. Os dados do texto poderiam ser usados para desprezar Jesus, como de fato aconteceu. Mas, Marcos os entende como fonte de honra, conforme um processo de “inversão” muito significativo.
De fato, Jesus, o Filho de Deus vivo, assumiu a condição humana, se fez “um entre tantos”, vizinho com os vizinhos, trabalhando com os que trabalhavam, assumindo a “comum lei do trabalho”. Era conhecido como o “filho do carpinteiro”.
Na vida escondida em Nazaré, Jesus assumiu a condição da imensa maioria dos mortais deste mundo, dos homens e mulheres “comuns”, dos que vão trabalhar ou estão sem emprego, dos que têm que “ganhar a vida” porque na vida não encontram seu lar, daqueles que são pura estatística…
Quando se perde a referência vital de que Jesus é o “caminho que nos leva à vida”, o seu cotidiano focado no trabalho se torna insuportável para aqueles que “buscam fama, honra e estima”.
Nesta vida comum e cotidiana foi onde Jesus cresceu em sabedoria e graça; ali Ele se “humanizou”.
Foi em Nazaré que Jesus aprendeu a olhar a realidade, o contexto social, com o sofrimento dos homens e mulheres de seu entorno. Provavelmente seus antepassados foram da Judeia a Nazaré como agricultores, recebendo como propriedade parcelas de terra que os vinculavam à promessa e benção antigas. Mas, num dado momento, os descendentes desses novos colonos perderam as terras, devendo trabalhar como artesãos eventuais.
Em princípio, um israelita ideal (segundo as promessas de Deus) devia ser proprietário de uma terra herdada. Mas a política urbana e mercantilista de Herodes, o Grande, e de seu filho Antipas fez com que muitos agricultores de Galileia tivessem que vender suas propriedades, tornando-se camponeses sem campo, artesãos eventuais (ou a serviço do templo e das construções reais) ou mendigos.
Jesus viveu num tempo de transformação comercial e urbana, e muitos agricultores não puderam manter sua autonomia, de maneira que tiveram que vender seus campos aos oligarcas, tornando-se arrendatários ou artesãos a serviço das classes ricas das cidades. Jesus não teve outra opção: era pobre pela situação social e laboral, e, a partir daí, aprendeu a viver e a olhar a partir do mundo dos pobres.
Mc. 6,3 define Jesus como “ho tekton” (o artesão), ou seja, um camponês sem-terra, de maneira que teve de viver e trabalhar entre operários eventuais ou diaristas, arrendatários explorados, enfermos, marginalizados e pobres. Conhecia a pobreza por dentro; era realmente pobre por seu trabalho e o lugar que ocupava na sociedade. Como “judeu marginalizado”, não podia manter-se por si mesmo, senão que dependia do trabalho em obras alheias, alimentando-se mal, ao ar livre, dormindo em lugares lúgubres…
Essa foi sua escola, essa foi sua identidade: vendia seu trabalho, encontrando-se à mercê das necessidades e ofertas (ou não ofertas) dos proprietários.
Só sabemos que foi o artesão de Nazaré, e que essa palavra o definia dentro da sociedade. Era um artesão do povo, pobre entre os pobres expulsos de suas terras. Como trabalhador artesão, pode conhecer a dor real do povo, na escola de Deus, que é a escola da vida humana, em contato com as necessidades dos excluídos, dos loucos, dos enfermos, dos famintos, em solidariedade laboral.
Não foi hábil marceneiro capaz de enriquecer-se através de sua destreza. Foi simples operário, como membro do grupo dos novos pobres, por necessidade social, pelo contexto em que havia nascido, ainda que por família tivesse recebido uma intensa formação. E, na vida “oculta”, Jesus cresceu em “sabedoria”.
Assim aprendeu a ser humano, ouvindo os gritos dos homens e mulheres de seu entorno, expulsos, oprimidos, como ovelhas sem pastor. Não teve que entrar a partir de fora no lugar da dor; cresceu ali, o levava dentro.
Jesus viveu e trabalhou no lugar apropriado para aprender, por experiência e solidariedade, aquilo que é mais importante, aquilo que até então quase ninguém tinha visto e escutado. Esses anos de trabalho artesão não foram de “vida oculta” (em sentido intimista), senão de solidariedade e encontro com homens e mulheres de seu contexto. Os evangelhos não quiseram dar mais detalhes sobre o tempo em Nazaré.
Quando uma pessoa não se empapa do cotidiano, não vive a vida normal do comum dos mortais, quando não compartilha da alegria e das dores da imensa maioria, quando não luta e se faz gente entre as pessoas, dificilmente terá resistência para viver um grande projeto, sem sucumbir às armadilhas deste mundo.
Viver “sendo um entre tantos” outros, acolhendo a vida cotidiana em toda sua riqueza e limitação é o que nos permite poder viver apostolicamente com “sabedoria”, nos permite saber discernir o trabalho e as atividades sem perder referências e dados da realidade. Quando deixamos de pôr os olhos n’Ele e na “imensa maioria”, podemos perder o foco.
O trabalho na “vinha do Senhor” nos faz “um entre tantos”, mas ser “um entre tantos” dá pânico em muitos ambientes cristãos. Custa-nos assumir a trama do cotidiano, do vulgar, daquilo que pertence ao ambiente popular, dá medo dissolver-nos e perder-nos. Viver o seguimento do Senhor Jesus é viver o caminho da vida; é na dureza da vida que encontramos o Espírito que nos foi dado. É no compromisso com a vida que encontramos o Vivente, Aquele que submergiu nas águas deste mundo do trabalho por amor até o extremo.
Texto bíblico: Mc 6,1-6
Na oração: leia, com calma e sabor, o evangelho deste dia. Deixe que as palavras de Jesus despertem novas e diferentes palavras nas profundezas de seu interior, palavras carregadas de sentido e de ânimo.
– Crie silêncio para poder dialogar com seu eu profundo, para ver o que há por detrás de suas palavras, de seus sentimentos, de suas intenções… Silêncio para tentar ir ao coração de sua verdade.
– Cave palavras nas minas do seu silêncio e deixe que o Espírito diga a “palavra” misteriosa, diferente, reveladora de sua verdadeira identidade. Somente o silêncio poderá gerar “palavras de vida”.
– Reze o seu “cotidiano”, lugar do encontro com Aquele que deu sentido a toda ação laboral.
Padre Adroaldo Palaoro, SJ
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana (CEI).