Espiritualidade do (no) trânsito: por que não?

Em poucas palavras, a base da prática cristã, ouso dizer, é seguir os passos de Jesus, em todos os lugares e situações em que estamos. Assim não nos deveria estranhar dizer de uma espiritualidade do trânsito.

No dia 25 de julho, os católicos celebram São Cristóvão, o padroeiro dos motoristas, como é conhecido em nosso País. A Igreja oficial não dá mais tanto destaque a esse santo, mas a coloridíssima fé popular cuida de louvar aquele que “carregou Cristo nos ombros”. O nome Cristóvão vem de Cristóforo (o portador de Cristo), e os cristãos e cristãs batizados precisam ser Cristóforos, Cristóvãos, levando Jesus a todos os destinos e sendo um sinal, um sacramento do Senhor, nas diversas rotas desta vida.

Sobretudo no Brasil, o trânsito é um ambiente complicado para condutores, pedestres e autoridades. Não obstante o maior rigor das leis, continuamos sendo um país em cujas ruas e estradas são feridas ou mortas muitas pessoas diariamente. Em milésimos de segundo, podemos passar do céu ao inferno, dependendo de uma série de fatores, inclusive no profundo de nós. Num descuido, podemos ostentar o que temos de pior e mais nebuloso de nosso espírito, mas recordemos: “todos vós sois filhos da luz e filhos do dia. Não somos da noite nem das trevas” (1 Tessalonicenses 5,5).

Nessa espiritualidade, tudo deve partir do entendimento de que jamais devemos compreender o tráfego como algo individualista. Pensar comunitariamente é o começo. Mesmo se estamos sozinhos numa via, nossas boas ou más atitudes influenciam a jornada de quem vem depois de nós ou cruza nosso caminho. Um objeto jogado na estrada, por exemplo, por mais “inofensivo” que pareça, pode, em graus diferentes, colocar em risco outras pessoas ou até prejudicar a natureza ao redor. Isso se acentua quando desobedecemos à sinalização, abusamos da velocidade ou, hipnotizados pelo celular, atravessamos distraídos uma rua.

O trânsito também é um ambiente propício à prática da misericórdia. O cansaço, a inexperiência, a imprudência, a imperícia ou a negligência de um podem prejudicar o caminho de outros, causar prejuízo ou ferir alguém. Os melhores motoristas e pedestres erram vez ou outra. Aqui recorro ao óbvio: somente Deus é perfeito. Quem nunca aprontou alguma, mesmo que sem querer? É um grande exercício cristão relevar as falhas e, à maneira dos desportistas, procurar seguir o caminho. Sei que não é tão simples, mas quem disse que seguir os passos de Jesus seria fácil?

Partilho outras experiências de estrada pelas quais fui agraciado com lições de vida. Ainda sobre o relevar as falhas dos outros, conto o que aprendi de meu pai. Certa vez, fui com ele em viagem de caminhão ao Alto Paranaíba, no Oeste de Minas Gerais. À noite, já voltando para Belo Horizonte, no meio de uma serra, local reconhecidamente perigoso, um carro pequeno veio com os faróis muito altos e, ignorando os avisos, ofuscou minha vista e, pior, a de meu pai. Na carroceria, umas boas toneladas de carga (levávamos outro caminhão).

Na imaturidade de minha adolescência, pensei que meu pai jogaria nos olhos do outro condutor todas as luzes do “bruto” (eram muitas). Mas não houve revide à barbeiragem. Eu quis saber o motivo. Meu pai respondeu que seria melhor apenas um dos motoristas estar “cego” no mesmo lugar (repito, perigosíssimo) do que os dois. A possibilidade de tragédia estaria reduzida pela metade. E então, já com a vista recuperada, seguimos em paz o trecho. Um ensinamento a valer para outros desafios da vida.

Outra vez foi quando, ao voltarmos de Brasília, sentimos um forte cheiro de diesel. Ao olharmos para o assoalho da cabine, tudo estava encharcado com o combustível. Tivemos de parar imediatamente no meio da estrada, em lugar isolado. Pensei que meu pai, meio “sangue quente”, começaria a esbravejar, mas outra surpresa! Com serenidade enorme, ele desceu do caminhão, tomou logo a providência de sinalizar o caminho, para dar segurança a quem pudesse passar (ninguém veio), e procurou reparar o veículo. Não aguentei e perguntei-lhe a razão de estar tão calmo. E a resposta: se temos fé, compreendemos até os imprevistos; talvez Deus poderia estar nos libertando de algo pior à frente. Mais uma da estrada que serve para a vida!

Inicialmente, a Igreja, a grande comunidade dos seguidores de Jesus, era conhecida como “O Caminho”. E o caminho se faz percorrendo-o, já diz o ditado. A estrada tem seus altos e baixos, seguranças e obstáculos. Não podemos é desanimar da jornada ou deixar de socorrer, como o fez Jesus muitas vezes, aqueles que estão caídos às margens. Seguir as veredas do Senhor é compreendê-lo como o “Caminho, a verdade e a vida” (João 14,6a), e como companheiro de viagem, ávido por entrar na pousada de nosso coração e cear conosco (cf. Apocalipse 3,20).

Seja como pedestres, seja como condutores, condutoras ou outros responsáveis pelo tráfego, tenhamos em nosso peito que o trânsito é, sim, lugar para a santidade, para nosso testemunho cristão. Oremos com as palavras do Salmo 24(25): “Mostrai-me, ó Senhor, vossos caminhos e fazei-me conhecer a vossa estrada! Vossa verdade me oriente e me conduza, porque sois o Deus de minha salvação”.

São Cristóvão, São Rafael e Nossa Senhora da Estrada, abençoai e protegei todos os que são e estão no trânsito. Amém!

Dedico estas linhas a meu pai, Luiz Gracildo Rodrigues Marques, que, após cumprir por aqui suas muitas jornadas, agora descansa nas paragens de Nosso Senhor.

Alessandro Faleiro Marques
Diácono permanente na Arquidiocese de Belo Horizonte, professor, editor de textos para as irmãs missionárias servas do Espírito Santo.

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