“Ele crescia cheio de sabedoria, e o favor de Deus estava com ele”
Lc 2,22-40
O Evangelho na Festa da Sagrada Família é tirado dos primeiros capítulos de Lucas. Mais uma vez, encontramos um tema muito importante: o encontro entre a Antiga e a Nova Aliança. Durante o Advento, Lucas fazia um paralelo entre Isabel, Zacarias e João Batista, e Maria, José e Jesus. No texto de hoje, os justos da Antiga Aliança são representados pelas figuras de Simeão e Ana, profeta e profetiza. Outros dois temas de Lucas também se destacam nesse relato: o Espírito Santo e a opção pelos pobres.
Lucas destaca que os pais de Jesus foram ao Templo, conforme a Lei (cf. Lv 12,8), para oferecer o sacrifício (dois pombinhos). Na Lei, esse sacrifício era permitido aos pobres. Mais uma vez, continuando a lição da manjedoura e dos pastores, Lucas sublinha o amor especial de Deus aos pobres. Deixa bem claro que Maria, José e Jesus eram contados entre eles; como, aliás, era toda a população de Nazaré de então!
Simeão e Ana representam, em quase os mesmos termos de Zacarias e Isabel, os justos que esperavam a salvação de Deus, o grupo conhecido no Antigo Testamento como os anawim, ou “pobres de Javé”. É de notar-se que, em seu canto, Simeão proclama que ele pode “ir em paz”, simbolizando que as esperanças dos justos da Antiga Aliança agora serão realizadas em Jesus. Como na Visitação, a idosa Isabel, símbolo também dos justos, acolhia com alegria a chegada de Maria com Jesus; agora Simeão e Ana recebem, com a mesma alegria, a novidade da Nova Aliança, concretizada em Jesus.
Mais uma vez, Lucas coloca juntos homem e mulher, um tema comum em seus escritos (cf. 4,25-28; 4,31-39; 7,1-17; 7,36-50; 23,55-24,35; At 16,13-34). Assim, Lucas insiste que homem e mulher se colocam juntos diante de Deus. São iguais em dignidade e graça, recebem os mesmos dons e têm as mesmas responsabilidades.
Como já fez em 2,19 e fará de novo em 2,50, Lucas frisa que os pais não entendem plenamente ainda o alcance do mistério de Jesus. O versículo 33 insiste que “O pai e a mãe do menino estavam admirados do que se dizia dele”. Mais uma vez, apresentando-nos José e, especialmente, Maria como modelos de fé. Apesar de qualquer revelação que eles tivessem, também precisaram caminhar na escuridão da fé, descobrindo, passo a passo, o que significava ser discípulo de Jesus.
Jesus “crescia e se fortalecia, cheio de sabedoria, e o favor de Deus estava com ele”. Mas esse crescimento foi gradual, como com todos nós, e sua família tinha um papel importantíssimo em seu crescimento. Se, como adulto, ele podia nos dar a imagem de Deus como o amoroso Pai, tema tão caro a Lucas, era porque também aprendeu isso pela experiência do pai adotivo, José. Se cresceu na espiritualidade dos anawim, era porque aprendeu isso desde o berço, junto com os pais. Se foi fiel na busca da vontade de Deus, era porque assim se aprendia no ambiente familiar. Em um mundo como o nosso, que desvaloriza a vida familiar, o texto de hoje deve nos animar e desafiar, para que, como Maria e José, na claridade e na escuridão da caminhada, criemos um ambiente onde o amor possa florescer e onde nossos jovens possam aprender, como por osmose, a importância do amor nutrido em uma fé viva, na contramão da nossa sociedade consumista e materialista, que vê na família unida uma ameaça a seus contravalores.
Ninguém ignora que hoje a família tradicional enfrenta enormes dificuldades. Diante dos problemas, respostas fáceis não servem. Nem sempre é óbvio o caminho a seguir. Novas dificuldades e novas perguntas exigem um novo olhar da parte da Igreja.
Há poucos anos, presenciamos algo, infelizmente, quase inédito na Igreja: um Sínodo sobre a família, em que todos os participantes eram convidados pelo Papa a expressar, abertamente e sem medo, suas opiniões. Como a Igreja precisava disso! Houve divergências, obviamente, pois nem tudo é claro. Há quem prefira ignorar a realidade, fechar os olhos diante de problemas reais que causam, muitas vezes, muito sofrimento no seio das famílias e refugiar-se em chavões legalistas em lugar de procurar descobrir o que Jesus faria em tais situações.
O Espírito Santo vai iluminar a Igreja e as famílias se realmente buscarmos juntos as maneiras evangélicas a responder aos novos desafios. Rezemos pelas famílias, pelas que estão bem firmes e pelas desestruturadas, e rezemos pelo Papa Francisco, para que tenha força e saúde para continuar sua grande missão como representante de Jesus compassivo e misericordioso em nossos tempos.
Padre Tomaz Hughes, SVD, biblista e assessor da CRB e do Cebi. Dedicou-se a cursos e retiros bíblicos em todo o Brasil. Publicou diversos artigos e o livro “Paulo de Tarso: discípulo-missionário de Jesus”. Faleceu em 15 de maio de 2017. Suas reflexões bíblicas são muito atuais.