Interculturalidade para a missão

Como o rompimento das barreiras culturais pode transformar vidas

Nunca na história da humanidade, foi tão fácil se relacionar com outros países. A tecnologia, os meios de comunicação e a globalização tornaram possível a interação entre pessoas de diferentes lugares do mundo, reduzindo a distância geográfica a um toque ou clique virtual. Além disso, os meios de transporte cada vez mais ágeis e eficientes, bem como os fenômenos de imigração em massa proporcionam o encontro de pessoas de culturas variadas. 

No ano de 1999, o padre Arthur Rabuske afirmou, em uma de suas publicações, que o homem é um ser cultural. Não que ele dependa da cultura para sobreviver, mas que o simples fato de existir em um meio o faz produzir cultura, sendo distinta em cada espaço. Nesse cenário de diferenças, missionários são desafiados a viver e partilhar sua fé. Mas o que a cultura significa no contexto da missão? E como ambas se relacionam no trabalho do missionário?

Para responder a essas perguntas, é importante definir o termo cultura, que, para a Antropologia, carrega diferentes significados. Anthony Gittins (2008), um dos estudiosos da área, propõe que “cultura é o jeito como um grupo de pessoas reage, forma e molda seus ambientes”, sendo característico, peculiar e aprendido através da convivência. A cultura une pessoas sob os mesmos conhecimentos, mas também divide os conjuntos com costumes diferentes, o que fica bem evidente se observarmos os idiomas como um elemento cultural, por exemplo. O choque entre o diferente é inevitável, mas existem formas diversas de um missionário encará-lo.

Em outros tempos, o exercício da missão acontecia de maneira incultural, em que o missionário impunha seus costumes culturais à comunidade em que ele estava inserido, tal como era realizado com as comunidades indígenas no processo de catequização das colônias. A sociedade europeia da época tinha um forte sentimento etnocentrista. Consideravam-se melhores, mais evoluídos e enxergavam os nativos como seres com costumes arcaicos, sem cultura ou conhecimento, e estava em seu dever doutriná-los, não apenas na fé, mas também na cultura. O problema desse pensamento está no fato de que o pecado está presente na humanidade, independentemente de sua cultura específica, impedindo que exista uma superior a outra, e exigindo do missionário moderno o entendimento da interculturalidade. 

Falar de interculturalidade tem muito mais a ver com intercâmbio do que com tolerância. Não se trata de pessoas com culturas e nacionalidades diferentes coexistindo lado a lado, mas de uma interatividade que provoca transformação em todos os envolvidos, formando uma cultura que rompe o que é “meu” e o que é “seu”, e passa a ser “nosso”. Para passar por esse processo, é necessário entender que a missão se encontra no inter-, no espaço entre o que é familiar e diferente, entre unidade e diversidade, entre o global e o local. 

Milton J. Bennett (1993), sociólogo norte-americano, ficou conhecido por descrever os caminhos para o desenvolvimento da sensibilidade intercultural. De acordo com ele, tudo começa com a negação, quando, diante do confronto de realidades, o indivíduo considera a sua experiência como única e válida. Esse sentimento, dá abertura para a autodefesa, que acontece através da desvalorização do outro. Depois se passa a minimizar o diferente e ressaltar apenas as semelhanças. Nesse estágio, tem início a mudança contínua da mente etnocentrista (em que minha cultura é superior) para a etnorrelativista (quando eu percebo a cultura do outro), o que implica numa aceitação, em que não há concordância, mas respeito. Por fim, o sujeito passa a ver o mundo através de olhos diferentes e se adapta ao ambiente onde está, integrando essas culturas à sua própria forma de viver.

A missão intercultural requer competências características que estão relacionadas à capacidade de desenvolver conhecimentos, aptidões e atitudes orientadas que conduzam a comportamentos apropriados para as interações entre culturas. É necessário ouvir, observar, interpretar, analisar, avaliar e relacionar falas e atitudes a fim de que todo contato seja eficaz para o avanço da causa missionária. 

A missão se desenvolve no meio de dois saberes: “saber deixar e saber chegar”. É preciso aprender a deixar o lugar de origem e se encaixar ao novo local, identificando as próprias experiências e origens, e assumindo possibilidades de novas relações. O missionário precisa ter em mente que, antes de transformar, ele precisa ser transformado. 

O que é interessante observar é que, durante os deslocamentos, os missionários desenvolvem muitas atitudes em relação a si próprios e em relação aos outros. Silenciosamente, uma íntima relação elaborada entre as duas partes, devido ao encontro mútuo e constante. Criam-se novos laços entre si, um olhar carinhoso, respeitoso e divino um para com outro, em que se descobrem três segredos. O primeiro segredo é sobre si, pois foi criado na imagem semelhança de Deus; o segundo, sobre o próximo, não há o outro, pois tudo é uma manifestação de Deus; e o terceiro, sobre o comportamento, pois o que é mais importante nessa relação mútua é ser compassivo, acolher e hospedar o outro. 

É o caminho silencioso de tornar-se um cidadão universal, para adquirir múltiplas identidades ao mesmo tempo. Neste ponto o missionário adquire a sabedoria de reconhecer a importância de dois universos: a cultura de origem e a cultura de missão. Ambas são importantes, como afirma Nicolau Bakker (2018): “Saibamos que ninguém de nós, indo a outro continente ou outra cultura, consegue ‘desvestir-se’ de sua roupagem cultural original. Podemos compreender, e até ‘adotar’, uma nova cultura ou tradição religiosa, mas esta nunca será o nosso ‘eu’, formado na infância e na adolescência”. 

O mundo moderno, portanto, carece não apenas de missionários, mas de seres humanos que se dispõem a confrontar sua própria cultura, elencando aquilo que é positivo e negativo, buscando aprender com o outro, respeitando os costumes do outro, e vivendo para o crescimento de todos.

Irmã Zélia Cordeiro, SSpS

Coordenadora de Comunicação SSpS Brasil