No dia 11 de novembro de 2018, Ir. Nelly Boonen recebeu uma Homenagem do Núcleo de Justiça Restaurativa da Prefeitura de São Vicente-SP, ao lado da Kay Pranis, Minnesota, EUA. Desde 2010, Kay vem anualmente para o Brasil para dar formações de Justiça Restaurativa.
Ir. Nelly partilha o discurso que fez na ocasião, em que conta parte de sua história e de sua luta pela superação das consequências da violência e pela implantação da justiça restaurativa.
“Entre matar ou morrer, prefiro morrer.”
Agradeço por reconhecerem o valor dos processos formativos que oferecemos. Estendo essa homenagem ao Centro de Direitos Humanos e Educação Popular de Campo Limpo (CDHEP) no qual estamos empenhados para transformar os princípios de Justiça Restaurativa em ações. Ações na vida privada e na vida púbica, ações que fortaleçam relações comunitárias justas e que instaurem direitos.
O que fazemos no CDHEP, obviamente, não está desconectado daquilo que sou, de onde venho. Vou voltar um pouco na minha história, como filha de imigrantes holandeses que foram para Luxemburgo. Eram agricultores sem-terra, pobres, com 6 filhos. Sessenta anos atrás, meus pais faziam parte de um movimento de agricultores, que não eram proprietários de terra. E não eram da esquerda, simplesmente lutavam pela sobrevivência.
Conheço a vergonha de, a cada ano, ter que entregar um tipo de atestado de pobreza na escola. Conheço a raiva de ser tratada como diferente, como imigrante, cidadã de segunda categoria, excluída de possibilidades que os iguais tinham. Ao mesmo tempo, ficava tentando entender, ainda criança, os porquês dessa diferença, pois me achava tão igual a todos os outros.
Com 18 anos fazia parte de um grupo de jovens cristãos politizados. Participava de demonstrações contra a corrida armamentista entre União Soviética e Estados Unidos, contra as armas nucleares, contra a obrigatoriedade do serviço militar.
Um dia fomos visitar o cemitério de soldados americanos. Lá estão fincadas mais de 5.000 cruzes. Cinco mil vidas ceifadas pela guerra. Eu fiquei muito abalada diante desse cenário forte. Um pouco depois, cruzamos a rua. Fomos ao cemitério dos soldados alemães. São quase 11.000 túmulos de jovens, alguns com apenas 16 anos.
Percebi-me invadida por um desespero interior. A nitidez da violência, da inutilidade da guerra, das oposições levadas às últimas consequências, da espiral da violência ascendente… Naquele lugar, fiz uma promessa interior: “Entre matar ou morrer, prefiro morrer. E que Deus me dê a força para deixar que isso aconteça.”
Décadas depois, essa promessa ou esse dilema volta a ser atual. Não que eu queira morrer. Mas, a partir dos valores da Justiça Restaurativa, entendo que esse “morrer” tem a ver com acolher a própria vulnerabilidade e imperfeição. Tem a ver com o estar em contato com a própria violência, para não ter que “matar o outro”, por medo de sua violência.
Ao longo dos anos, fui aprendendo uma possibilidade de resistir, a partir de minha vulnerabilidade e de minha capacidade de ser violenta. Fui compreendendo: é exatamente, minha vulnerabilidade que me capacita para me conectar com a vulnerabilidade, a insuficiência, a imperfeição, a violência do outro.
Portanto, reconhecendo minha própria violência e imperfeição, não preciso matar o outro pela sua imperfeição. Essa escolha, ou rota, pede um esforço diário de transformação. Diariamente, eu tenho que tomar decisões para não entrar na espiral da violência, ou para sair dela. Às vezes, continuo, conscientemente ou inconscientemente, a reprodução da violência.
A liberdade que vem do perdão
Contudo, quando sou capaz de reconhecer esses movimentos do cérebro reptiliano, que só sabe atacar, fugir ou fingir, me resta uma saída: Posso me perdoar, posso presentear-me com o dom do perdão, com o perdão a mim mesma.
Imaginem, vocês, como ficaria minha vida se não conseguisse perdoar-me uma falha, um gesto, uma traição, um erro, uma violência. Minha vida seria uma prisão.
“Se não fôssemos perdoados, eximidos das consequências daquilo que fizemos, a nossa capacidade de agir ficaria limitada a um único ato do qual jamais nos recuperaríamos; seríamos para sempre as vítimas das consequências desse ato” (Hannah Arendt).
É evidente que eu preciso perdoar-me, e ciente de vulnerabilidade, eu sou convidada a perdoar outros. Assim procuramos juntos uma forma de cuidar da dor, do dano que minha falta provocou na relação com o outro e na convivência em sociedade.
Agora, imaginem, vocês, o que significa essa prisão interior para as mais de 730 mil pessoas iguais a mim, que estão nos presídios. Muitos deles estão lá sem condenação; outros estão lá condenados por um só ato.
Faz seis anos que, algumas duplas treinadas pelo CDHEP, estão trabalhando em diversos presídios em diferentes cidades do Brasil. Dão formação em Fundamentos de Justiça Restaurativa, incorporando oficinas ESPERE da Fundación para la Reconciliación da Colômbia.
Esse trabalho me confirma a importância do perdão – e do autoperdão – que significa aprender a aceitar a própria vulnerabilidade, que nos faz também escolher respostas equivocadas. Nesse momento, o perdão é a possibilidade de libertar-me do passado: tratando-se de minhas próprias ações e das ações que outros atribuíram a mim.
Desarmar o coração e a sociedade
Portanto, o perdão é uma possibilidade de desarmar o coração e desarmar a sociedade.
Nesse sentido, aproveito para parabenizar a Câmara de Vereadores de São Vicente que incluiu como Princípios da Justiça Restaurativa a interdependência, o perdão como manifestação – e perdão como necessidade; digo eu, exatamente pela interdependência…
Para continuar vivendo em comunidade, em sociedade, precisamos nos perdoar mutuamente, nos libertar do peso de atos passados que pesam sobre nós.
Parabenizo ainda a Câmara de Vereadores por incluir nos Princípios da Justiça Restaurativa, a abolição de medida meramente punitivas e penalizantes. É um princípio ousado, corajoso, nestes tempos, quando muitas vozes bradam por armas, diminuição de maioridade penal e aumento de penas.
Somente estando em paz com minha vulnerabilidade, estarei disponível para acolher a vulnerabilidade do outro. Somente acolhendo minha dor, poderei acolher a dor do outro, sem ter que matá-lo. Mas, morrendo cada dia um pouco à minha onipotência e minha violência.
Ir. Petronella Maria Boonen (Nelly) é co-fundadora da linha de Perdão e Justiça Restaurativa do CDHEP e doutora e mestra em Sociologia da Educação pela USP.)