Jesus não era de “sangue azul”

“Tu o dizes: eu sou rei. Eu nasci e vim ao mundo para isto: para dar testemunho da verdade” (Jo 18,37)

Com a festa de “Cristo Rei”, encerramos mais um ano litúrgico. O Evangelho indicado para esta festa nos introduz numa cena muito constrangedora da vida de Jesus. O contexto no qual ela se desenvolve é o processo de julgamento político ao qual Ele foi submetido, denunciado pelas autoridades judaicas. Como podemos observar, não estamos diante de um diálogo distendido entre dois iguais; é um procurador romano frente a um acusado que deve responder e dar razão daquilo que o levou a essa situação.

Condição mais inapropriada para Jesus se declarar “rei”.

Frente a isso, o evangelho de hoje revela-se surpreendente e até escandaloso, porque nos apresenta esse título numa situação de humilhação e impotência extrema: na Paixão, com insultos, escárnios e zombarias dos chefes judeus, de Pilatos, dos soldados romanos…

Jesus, rei atípico. Qualquer conotação que o título tenha com o poder deturpa a mensagem evangélica. Uma coroa de ouro na cabeça e um cetro de brilhantes nas mãos é uma ofensa ao mesmo Jesus.

Jesus não se apoia na força das armas nem se move no interior do sistema que se sustenta na injustiça e na mentira. Sua realeza tem um fundamento completamente diferente; ela provém do amor de Deus ao mundo. Ele reina entregando sua vida. Os reis deste mundo vivem às custas de seus súditos. 

Jesus reina perdoando, amando, a partir de uma situação de humilhação e impotência. João nos diz onde e como Jesus ganha este título de rei: na entrega de sua vida até a morte. Um rei crucificado é uma contradição. Seu senhorio é de amor incondicional, de compromisso com os pobres, de liberdade e justiça, de verdade, de solidariedade e de misericórdia. 

Jesus é rei dessa forma e não da forma triunfalista como querem muitos cristãos “fundamentalistas”. 

Um rei que toca leprosos, que prefere a companhia dos excluídos e não dos poderosos das nações.

Um rei que lava os pés dos seus, um rei despojado de poder, de riqueza e que não pode se defender.

Jesus crucificado é um estranho rei: seu trono é a cruz, sua coroa é de espinhos. Não tem manto, está desnudo. Não tem exército nem armas. Até os seus o abandonaram. Mísero rei!

Jesus não quis fazer-se rei militar, pois a violência pertence ao nível dos poderes de um mundo onde a verdade se encontra pervertida pela mentira dos poderosos. Jesus quis ser Rei, mas de maneira que todos pudessem ser reis, “testemunhas da verdade”. Assim respondeu a Pilatos, dizendo-lhe que “seu reino não era deste mundo”. Pilatos só conhecia um tipo de reino, aquele que se fundamentava na espada do império, que se apoiava e se defendia com as armas, de maneira que a verdade como tal tornou-se secundária. 

Meu Reino está em “ser testemunho da verdade”. Como Pilatos vai entender isso se está acostumado a fazer da verdade o que a ele lhe interessa e lhe convém?

Esta é a proposta: ser Rei sem tomar o poder, sem o exercer com a força das armas, nem por algum tipo de justiça legal, nem por dinheiro… Esta é a tarefa da nova humanidade, a promessa de um Reino do conhecimento verdadeiro, da igualdade, da fraternidade e não violência… para que todos sejam “reis”, no sentido radical da palavra.

Portanto, a festa de “Cristo Rei” revela-se como uma boa oportunidade para o encontro com a nossa verdade: n’Ele, todos somos “reis”, ou seja, quando nos identificamos com Ele, também somos reis. Reis servidores devemos ser todos. 

Comprometemo-nos com o “Reinado de Deus” porque, como reis, estamos todos a serviço de todos.

“Sou rei…, e vim ao mundo para dar testemunho da verdade”. É neste mundo que Jesus quer exercer sua realeza, mas de uma forma surpreendente: veio ser “testemunha da verdade”, introduzindo o amor e a justiça de Deus na história humana.

Esta verdade que Jesus deixa transparecer não é uma doutrina teórica. É um chamado que pode transformar a vida das pessoas. Ele já tinha afirmado antes: “Se permanecerdes na minha palavra… conhecereis a verdade e a verdade vos libertará” (Jo 8,31-32). Ser fiéis ao Evangelho de Jesus é uma experiência única, pois nos leva a conhecer uma verdade libertadora, capaz de tornar nossa vida mais humana.

Diante de Pilatos, mais uma vez, aparece a palavra “verdade” (“aletheia”), que Jesus considera como a razão de seu ser e de sua missão. A verdade da qual Ele fala não é um argumento carregado de afirmações fechadas para ter razão. Não se trata de possuir a verdade ou estar na verdade, de ter direitos sobre os outros, de se impor sobre alguém. Longe disso.

Jesus fala da “verdade” no sentido de uma atitude diante da vida, de uma opção de vida: viver na verdade é buscar a verdadeira essência que somos, nossa possibilidade de plenitude, nossas raízes mais profundas; é conectar-nos com esse Reino que traz à luz a bondade humana como imagem da bondade divina.

Só tomamos consciência de nossa realeza quando acessamos a nossa verdade mais profunda. Enquanto isso não ocorre, viveremos como mendigos, buscando nos apropriar e nos identificar com tudo aquilo que possa nos conferir certa sensação de identidade. No entanto, ao compreender o que somos, tudo se ilumina: o suposto “mendigo” se descobre “rei”.

Verdade é a realidade existente; ela salienta a dignidade de cada pessoa, reivindica liberdade e igualdade, sustenta o significado essencial do ser humano, preserva os valores consistentes.

A verdade des-cobre o que está encoberto, des-vela o que está velado, des-oculta o que está escondido, des-lumbra o que está ensombrado, des-mascara o que está camuflado, des-emudece o que está calado, des-cativa o que está algemado.

A verdade retira o mundo (interno e externo) da escuridão. Quando a verdade habita a consciência, o ser humano ilumina-se. Onde há verdade, há humanidade transparente. Há rosto fascinante. 

Ser “testemunha da verdade” requer “viver na verdade”, não em algumas crenças. E viver na verdade inclui o reconhecimento e a aceitação da própria verdade e da verdade presente no outro. Não pode estar na verdade quem não se aceita com toda sua verdade, com suas luzes e suas sombras; não pode estar na verdade quem vive identificado com seu ego ou com sua imagem idealizada. 

Pelo contrário, quando alguém se aceita assim, começa a viver na humildade e isso é já “caminhar na verdade”. Afirmando de um modo mais claro: só conhece a verdade quem é verdadeiro, transparente, sem máscara ou disfarces. Quando se é verdade, conhece-se a verdade.

É significativo que os antigos gregos entendessem a verdade como “a-létheia” (“sem véu”): quando “tiramos o véu” é quando emerge a Verdade do que somos, a nossa essência.

Importa “des-velar” a verdade, ir à morada da verdade, encontrar a verdade.

Isso é o que Jesus viveu. Porque chegou a experimentar a verdade profunda de si mesmo, pode dizer: “Eu sou a verdade”. Essa não era uma afirmação egoica, tampouco se referia a nenhuma crença ou ideia em particular. Era a proclamação-constatação humilde e jubilosa de quem desvelou e viu o “segredo” último de sua vida.

É aqui que se revela como Rei.

Texto bíblico: Jo 18,33-37

Na oração: revele-se diante de Deus e deixe transparecer a verdade de sua vida.

– A verdade que somos nunca pode ser algo que temos e possamos transmitir ou impor aos outros, mas a Presença que a todos sustenta e a todos abraça. Só a presença d’Aquele que é a Verdade ativa a verdade escondida em nosso interior.

– Sua vida está centrada no desvelamento de sua verdade, de sua essência? Ou ela se deixa determinar pela cultura da aparência, da vaidade, da mentira…?

 

Padre Adroaldo Palaoro, SJ

Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana (CEI).

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