A eleição de Leão XIV, em 2025, após o falecimento do Papa Francisco, inaugura uma etapa na história da Igreja. Seu nome carrega, intencionalmente ou não, um peso histórico. O último Papa com esse nome foi Leão XIII, considerado o pai da Doutrina Social da Igreja, que conduziu a Igreja a um diálogo profundo com os desafios do mundo industrial e das transformações sociais do fim do século XIX.
Hoje, Leão XIV assume não diante das fábricas e do proletariado urbano, mas num mundo dominado pelos algoritmos, pela inteligência artificial (IA), pelas redes digitais e pela emergência de uma nova espiritualidade: mais emocional, menos institucional; mais digital, menos comunitária; mais devocional, menos comprometida socialmente.
Diante disso, este texto reflete sobre como o legado de Leão XIII dialoga com os desafios de Leão XIV, que recebe uma Igreja com forte presença digital, mas com fragilidades pastorais, queda numérica em países historicamente católicos, avanço da secularização, crise ambiental e ameaças éticas advindas da inteligência artificial.
A herança de Leão XIII e os desafios de Leão XIV
Leão XIII foi um papa de transição. Em vez de resistir às mudanças da Modernidade, abriu as portas da Igreja para o diálogo com o mundo. Sua encíclica Rerum Novarum (1891) lançou as bases da Doutrina Social da Igreja, reconhecendo os direitos dos trabalhadores e propondo uma Igreja que não fugisse dos problemas sociais, mas que se comprometesse com eles.
Leão XIV, ao escolher esse nome, parece assumir esse mesmo espírito de enfrentamento dos grandes desafios de seu tempo. Contudo, enquanto Leão XIII lidava com a industrialização, o liberalismo e o socialismo, Leão XIV enfrenta: a virtualização da fé, em que a espiritualidade migra das comunidades para as plataformas digitais; o avanço da inteligência artificial, que ameaça a dignidade do trabalho humano, a privacidade e até a própria verdade; a crise climática, a exploração desenfreada dos recursos e as guerras que expõem a fragilidade da vida no planeta; a expansão de uma religiosidade devocional-emocional, que cresce nos ambientes digitais, mas desconectada da missão, da vida comunitária e do compromisso social.
Diferenças culturais e eclesiais: Francisco e Leão XIV
O Papa Francisco, vindo do contexto latino-americano, foi profundamente moldado pela Teologia do Povo e pela opção preferencial pelos pobres. Seu pontificado apostou na descentralização, no fortalecimento das conferências episcopais, no protagonismo dos leigos e na sinodalidade como caminho pastoral e missionário.
Leão XIV, por sua vez, surge num contexto em que a pressão por uma Igreja mais ancorada na tradição, na defesa da doutrina e na preservação da identidade católica é muito forte, sobretudo como resposta ao relativismo, à fragmentação cultural e às incertezas éticas do mundo digital.
O desafio, porém, é enorme: como não recuar para um modelo de Igreja autocentrada, defensiva e clericalizada? Como proteger a fé sem transformar a Igreja em fortaleza isolada? Como dialogar com a cultura digital sem se render à lógica do espetáculo, da superficialidade e do consumo religioso?
O crescimento do devocional e a crise do pastoral
A princípio, pensávamos que esse fosse um efeito pós-covid-19, mas o mundo católico atual vive um fenômeno paradoxal que supera as consequências de um fato isolado como esse. As paróquias esvaziam-se lentamente nas nações historicamente católicas, enquanto movimentos devocionais e perfis religiosos digitais explodem em seguidores.
O compromisso social, pastoral e comunitário dá lugar a uma fé emocional, centrada em experiências sensíveis, promessas de cura, proteção e prosperidade espiritual. A missão deixa de ser territorial, encarnada, e se transforma em presença digital, nem sempre comprometida com a vida real das comunidades.
Esse modelo gera uma Igreja que cresce digitalmente, mas se enfraquece pastoralmente. É uma fé de consumo, marcada por eventos, retiros e conteúdos on-line, mas que, muitas vezes, não se traduz em conversão, em solidariedade, em defesa dos pobres nem em cuidado com a Casa Comum.
Igreja digital, inteligência artificial e o desafio da fé
A ascensão da inteligência artificial impõe perguntas profundas à missão da Igreja: qual o papel da fé em um mundo onde a IA redefine relações, trabalho, conhecimento e até a própria percepção da realidade? Como anunciar o Evangelho num ambiente no qual as bolhas de informação substituem o diálogo, a verdade é moldada por algoritmos e o ser humano se torna produto das plataformas?
Se a Igreja não enfrentar esses desafios, corre o risco de ser colonizada pela lógica das redes: a fé como entretenimento; o Evangelho como conteúdo; o missionário como influenciador.
Por isso, Leão XIV terá de articular uma teologia e uma pastoral que dialogue com a ética da IA, com a dignidade digital, com os novos pobres (os descartados do capitalismo digital) e com a necessidade de construir uma espiritualidade profundamente humana, comunitária e ecológica.
A voz da Igreja num mundo em crise
Apesar da secularização, das guerras e das crises ambientais, a Igreja ainda tem voz. Precisa, contudo, ser uma voz profética, não cúmplice; uma voz que defenda a vida, não os interesses econômicos; uma voz que anuncie a esperança, não o medo.
O mundo espera uma Igreja que denuncie as estruturas que geram desigualdade, exclusão e destruição ambiental; anuncie que a fraternidade é possível num mundo fragmentado; seja ponte entre a tecnologia e a ética, entre a fé e a razão, entre a tradição e a inovação.
Caminhos para os missionários, líderes e comunidades
O que nos cabe, como missionários, líderes e batizados?
- Formação robusta: combater o analfabetismo religioso e teológico que permite o crescimento de falsas doutrinas, sensacionalismo e espiritualidade de consumo.
- Presença ética nas redes: evangelizar sem se render à lógica do mercado digital, sem transformar o Evangelho em produto.
- Fortalecer as comunidades presenciais: os sacramentos, a vida fraterna e o serviço são insubstituíveis.
- Compromisso com os pobres e com a Casa Comum: não há verdadeira fé sem compromisso com a justiça.
- Cuidado com os descartados digitais: os invisíveis das plataformas, os excluídos da tecnologia, os esquecidos pelo sistema digitalizado.
- Espiritualidade do encontro: que resiste à cultura do clique, da pressa e da superficialidade.
- Diálogo com a IA e com a ciência: uma Igreja que não teme a modernidade, mas que coloca critérios éticos e evangélicos no desenvolvimento tecnológico.
Tempo de escolhas
Leão XIV tem diante de si um dos pontificados mais desafiadores da história da Igreja. Ele não está chamado a escolher entre tradição e modernidade, mas a articular uma Igreja fiel ao Evangelho e relevante no mundo contemporâneo.
Se conseguir equilibrar a mística da fé, a força da tradição, o compromisso com os pobres e o discernimento crítico diante da tecnologia, a Igreja poderá não apenas sobreviver a esta mudança de época, mas ser sinal profético e esperança viva para as gerações presentes e futuras.
Se, ao contrário, optar apenas por fortalecer uma espiritualidade devocional, isolada dos problemas do mundo, corre o risco de se tornar irrelevante, mesmo que com milhões de seguidores nas redes.
O tempo de Leão XIV é tempo de escolhas. E o tempo da Igreja é sempre o tempo do Evangelho: “Ide por todo o mundo e pregai o Evangelho a toda criatura”. Seja nas praças, nas paróquias, nas redes, nos algoritmos ou nas periferias esquecidas.
Para saber mais
Bauman, Zygmunt. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.
Dicastério para a Doutrina da Fé. Igreja e inteligência artificial: desafios e perspectivas éticas. Santa Sé, 2024.
Francisco (Papa). Fratelli tutti. Santa Sé, 2020. Disponível em: https://www.vatican.va/content/francesco/pt/encyclicals/documents/papa-francesco_20201003_enciclica-fratelli-tutti.html
Francisco (Papa). Laudato si’. Santa Sé, 2015. Disponível em: https://www.vatican.va/content/francesco/pt/encyclicals/documents/papa-francesco_20150524_enciclica-laudato-si.html
Han, Byung-Chul. No enxame: perspectivas do digital. Petrópolis: Vozes, 2018.
Leão XIII (Papa). Rerum novarum. Santa Sé, 1891. Disponível em: https://www.vatican.va/content/leo-xiii/pt/encyclicals/documents/hf_l-xiii_enc_15051891_rerum-novarum.html
Zuboff, Shoshana. A era do capitalismo de vigilância. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020.
Padre Cristóvão Gonçalves da Silva
Missionário do Verbo Divino.