“Desde o início da Criação, Deus os criou homem e mulher” (Mc 10,6)
Os fariseus apresentam a Jesus uma pergunta para pô-lo à prova. Desta vez, não é uma questão sem importância, mas uma situação que alimenta muito sofrimento às mulheres da Galileia e é motivo de acaloradas discussões entre os seguidores de diferentes escolas rabínicas: “É lícito o marido separar-se de sua mulher?”.
Não se trata do divórcio moderno que conhecemos hoje, mas da situação em que vivia a mulher judia dentro do casamento, controlado absolutamente pelo homem. Segundo a Lei de Moisés, o marido podia romper o contrato matrimonial e expulsar sua esposa de casa. A mulher, pelo contrário, submetida em tudo ao homem, não podia fazer o mesmo.
A resposta de Jesus surpreende a todos. Não entra nas discussões dos rabinos. Convida a descobrir o projeto original de Deus, que está acima de leis e normas. Essa lei “machista”, em concreto, se impôs no povo judeu pela dureza do coração dos homens, que controlavam as mulheres e as submetiam à sua vontade.
Jesus aprofunda no mistério do ser humano a partir de sua origem, quando Deus “os criou homem e mulher”. Os dois foram criados em igualdade. Deus não criou o homem com poder sobre a mulher. Não criou a mulher submetida ao homem. Entre homens e mulheres, não deve haver dominação por parte de ninguém.
A partir dessa visão do ser humano, já presente na origem, Jesus oferece uma visão do matrimônio que vai mais além de tudo o que foi estabelecido pela Lei. Mulheres e homens se unirão para “serem uma só carne” e iniciar uma vida compartilhada na mútua entrega, sem imposição nem submissão.
Esse projeto matrimonial é para Jesus a suprema expressão do amor humano. O homem não tem direito algum para controlar a mulher como se fosse seu dono. A mulher não deve aceitar viver submetida ao homem. É Deus mesmo que os atrai a viver unidos por um amor livre e gratuito. Jesus conclui de maneira clara: “O que Deus uniu, o homem não separe”.
Com essa posição, Jesus está destruindo na raiz o fundamento do patriarcado e do machismo, sob todas as suas formas de controle, submissão e imposição do homem sobre a mulher. Não só no matrimônio, mas em qualquer instituição, civil ou religiosa.
O evangelho de hoje nos convida a retornar ao início da criação do ser humano, homem e mulher, chamados a viver a vocação da união mútua. O homem deve deixar seu pai e sua mãe, deve abandonar o sistema patriarcal e empreender um novo caminho, não já em solidão, mas na união maior imaginável: “se unirá à sua mulher e serão os dois uma só carne”. A identidade não é uma soma, mas a comunhão crescente que busca a unidade.
Essa proposta original de Deus é vivida sempre entre os casais, de ontem e dos tempos atuais?
Hoje descobrimos, talvez com mais claridade, que, em outros tempos, o quão difícil para muitos casais manter a unidade amorosa, que no princípio de sua relação parecia ser tão forte.
São muitos os fatores dissonantes que impedem o “concerto amoroso”, são muitos os distanciamentos, as incompatibilidades, as divisões… que esfriam o romance entre os casais. Hoje também, mais conhecedores da biologia e da psicologia humana, somos mais sensíveis e compreensivos para com aqueles que vivem profundos conflitos na relação matrimonial e, no entanto, sentem o chamado para a unidade.
A partitura que o Criador nos oferece de comunhão entre o homem e a mulher é belíssima, é “imagem e semelhança do mesmo Deus”, mas também é difícil interpretá-la como projeto de vida e de aliança sem volta atrás.
Jesus, na sua vida oculta e pública, encontrou uma realidade de muitos casais que não correspondia àquela desejada por seu Abbá Criador: “no princípio não foi assim!”. Ele, que tem palavras de vida (transmissoras de vida), afirma taxativamente: “O que Deus uniu, o homem não separe”.
Essas palavras não são uma lei fria, mas uma promessa, uma realidade possível. O ser humano pode bloquear, com sua falta de fé e seu compromisso, o dom que lhe foi concedido. É preciso deixar o protagonismo para Deus na relação de casal.
Jesus convida a deixar-se unir por Deus, a descobrir aquela pessoa, na qual cada ser humano encontra sua “ajuda semelhante”. É preciso saber discernir que é “o que Deus uniu”. Bendizer aquilo que Deus “não uniu” é uma profanação. A beleza do Sacramento do Matrimônio está precisamente em deixar transparecer a benção de Deus diante daquele casal que Ele foi unindo através da aventura e do romance amoroso.
Ou seja, “serão uma só carne” quando realizam essa união ao longo da vida; tal realidade não se revela de forma automática ou mágica no instante de dizer “sim, quero”. Demora toda uma vida em realizá-la; às vezes, não se consegue, o vínculo se interrompe ou se fragiliza. Requer, em alguns casos, sanação; em outros, refazer o caminho da vida.
O Evangelho de Jesus Cristo não é um código canônico, mas a Boa-Nova da misericórdia. Deus nos ama também e, sobretudo, em nossas falhas e fracassos. A Igreja não é alfândega, mas casa paterno-materna onde há lugar para cada um com sua vida, carregada de recursos e de fragilidades.
Não se trata de pôr em discussão a visão cristã do matrimônio, mas de ser fiéis a esse Jesus que, ao mesmo tempo que defende o matrimônio, se faz presente a todo homem ou mulher, oferecendo-lhes sua compreensão e sua graça. Nunca se deixa determinar pela lei que julga e condena; mas deixa transparecer um coração compassivo e acolhedor para com aqueles(as) que fracassaram em seu projeto de amor mútuo.
O próprio Jesus, que condena o adultério, se apresenta como defensor de uma mulher surpreendida em adultério, quando se encontra com ela cara a cara, cuja vida as autoridades religiosas queriam eliminar, Jesus, com sua atitude misericordiosa, longe de destruí-la, a perdoa e lhe oferece um novo futuro: “Nem eu te condeno. Vai e de agora em diante não peques mais”. Esta é a atitude mais humana e humanizadora: crítica exigente frente a uma sociedade que chama “amor” a qualquer coisa. E toda a compreensão do mundo diante de quem tem que viver situações de dor e de sofrimento, porque seu amor se rompeu ou fracassou.
Os fracassos matrimoniais não são sempre e nem fundamentalmente um problema jurídico que se possa resolver com determinadas leis. São problemas pessoais, emocionais, psíquicos, de raízes e consequências muito profundas, que as leis não podem nunca solucionar.
Temos de redescobrir atitudes mais próximas para com os casais rompidos, independentemente de soluções jurídicas, civis ou eclesiais. Como cristãos, não podemos fechar os olhos diante de um fato profundamente doloroso. Os(as) divorciados(as), geralmente, não se sentem compreendidos pela Igreja nem pelas comunidades cristãs. A maioria só escuta a aplicação de leis e disciplinas que não conseguem entender. Abandonados(as) em seus problemas e sem a ajuda de que necessitam, não encontram na Igreja o lugar da acolhida.
É precisamente nessas circunstâncias quando deveríamos nos perguntar o que podemos fazer, como cristãos, para ajudar tantos homens e mulheres que vivem situações de profundas dores, provocadas por conflitos e incompatibilidades na vivência matrimonial. Não basta defender teoricamente a indissolubilidade matrimonial e impor mais pesos sobre os ombros dos casais católicos que não podem carregar.
Temos de nos perguntar: que ajudas as comunidades cristãs podem oferecer a tantas pessoas que fracassaram em seu matrimônio, devido a uma opção não amadurecida, a uma falta de conhecimento mais profundo do(a) parceiro(a), a uma deterioração em sua comunicação, a incompatibilidades psicológicas, ou simplesmente por uma atitude egoísta?
É injusto que, levados por um rigorismo e legalismo excessivo, marginalizemos e esqueçamos muitos homens e mulheres que se esforçaram por salvar seu matrimônio, e que já não tem mais forças para enfrentar sozinhos(as) seu futuro.
Mais misericórdia e menos rigorismo!
Texto bíblico: Mc 10,2-16
Na oração: fazer memória de muitas pessoas que sofrem por causa do fracasso matrimonial e que não encontram apoio na comunidade cristã.
– Qual sua atitude diante delas? Rigidez na aplicação de leis ou acolhida misericordiosa?
Padre Adroaldo Palaoro, SJ
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana (CEI).