Eram 6h15min da manhã, e eu já estava correndo para pegar o ônibus.
Estava indo, pela primeira vez, a um município vizinho, resolver assuntos de família.
Custou a passar, mas o ônibus chegou…
Logo reparei uma pessoa dormindo, ocupando duas cadeiras e com marcas de vômito no rosto.
Logo atrás de mim, um jovem começou a falar alto: “Joaquim, você não sabe beber! Toda segunda-feira, é isso… Vou lhe ensinar!”.
Dito isso, seu colega já retrucou: “Bebendo do jeito que você anda bebendo, não sei o que você vai poder ensinar para ele!”.
A viagem era um pouco longa e, conforme mais passageiros subiam, um comentário a mais surgia a respeito da cena que me estranhara.
Dessa vez, foi uma senhora de mais idade, que pegou seu terço e pôs-se a rezar. Até que tentou um contato, mas foi em vão. O tal do sr. Joaquim seguia “apagado”.
Ele parecia popular por ali. Cada um que chegava tinha algo a lhe falar.
Fechei meu livro e segui escutando discretamente o que cada um dizia, visto que o ônibus, àquela hora do dia, era vazio e quase silencioso.
A resenha do que eu ouvi é mais ou menos esta:
Parecia que o pai, o Joaquinzão, também era dado ao excesso de álcool. Já seu filho mais velho não bebia. Trabalhava no Posto de Saúde, indo de casa em casa e, com sua vivência, ajudando muita gente. Ele sabia que o pai estava doente, precisando se tratar da dependência.
A esposa de Joaquim estava, havia seis meses, morando com irmãs na roça. Parecia que, de tanto enfrentar aquela realidade, ela fora descansar de tanta exaustão. Diziam que iria separar-se dele. Levara com ela uma filha de 6 anos.
Disseram que aquela situação do sr. Joaquim com o álcool foi acontecendo aos poucos e, quando perceberam, ele já não parava mais de beber. Era beber para acordar, para trabalhar, para dormir, para tudo…
O sr. Joaquim já tinha sido muito preocupado com a vida, família, com a comunidade, atuando na associação. Parece que o álcool era um amortecedor, um relaxante para ele aguentar tanta pressão.
Um senhor da mesma idade e de uma aparência semelhante disse, em tom de tristeza, que não sabia o que era pior, se era ele dormindo daquele jeito ou criando confusões, quando bebia, perto de casa.
Olhando um pouco de longe, já dava para ver sua pele, na altura do olho direito, “roxeando” e ficando inchada.
De tudo que escutei, uma frase me chamou muita atenção. Existem frases lidas, escutadas, memorizadas que são mais que palavras, são bússolas, são faróis: “Tudo me é permitido, mas nem tudo convém. Tudo me é permitido, mas eu não me deixarei dominar por coisa alguma” (1 Coríntios 6,12). Nem sei se eu alcanço a profundidade, a complexidade e a autonomia que essa citação bíblica nos implica.
Fato é que a vida é tomada de decisões, até mesmo quando a gente opta por não decidir.
O que me convém? O que lhe convém? O que seria conveniente ao sr. Joaquim?
O que está por trás da cena que eu via no ônibus que seguia viagem?
Qual a intensidade da condição do uso do álcool do sr. Joaquim para saber o que fazer?
Como sobreviver a tantos apelos de consumo de álcool em tantas lives sertanejas e em tantos realities?
Cada um de nós tem sempre um “sr. Joaquim” por perto e sabe da tensão permanente que é lidar com tramas, dramas e teias de esperança que cercam essa situação.
Estava chegando meu destino. Eu sabia que, no ponto seguinte, que era o final, seria o destino do sr. Joaquim.
Desci, mas fiquei acompanhando, de longe, a cena final.
E lá foi ele. Desceu cambaleando e foi recebido aos pulos e latidos por um grande cachorro, que fez “festa” por sua chegada e acompanhou o sr. Joaquim no trajeto, fazendo rodeios e pulando de alegria…
Segui olhando até os dois sumirem de meu campo de visão.
A partir dali, não enxergava mais nada. Aliás, temo que eu já não estava enxergando muito bem desde que vira o sr. Joaquim pela primeira vez.
Maria José Brant (Deka), assistente social, analista de políticas públicas na Prefeitura de Belo Horizonte-MG, mestra em Gestão Social, mosaicista nas horas vagas.