Mulheres e ciência: uma parceria de longa data

Que a ciência é de suma importância para o desenvolvimento de qualquer sociedade, disso todos sabemos. E que a maioria de nós conhece pelo menos um nome de alguém importante nesse avanço, isso também é muito provável. Agora propomos um exercício: tente lembrar o nome de uma mulher que tenha uma posição de destaque na ciência.

Se você não lembrou, fique tranquilo! Como a maior parte dos trabalhos que acabam tendo reconhecimento são aqueles liderados por homens, é comum que pensemos que as mulheres não são participantes ativas dessa área.

Mas não se iluda! Exemplos não nos faltam. Temos Rosalind Franklin (1920-1958), que tem o título póstumo de “Mãe do DNA”, por ter descoberto o formato helicoidal da molécula; Marie Curie (1867-1934), pioneira nos estudos da radioatividade, foi a primeira mulher a ganhar um Prêmio Nobel e a primeira pessoa a conquistar por duas vezes essa premiação. Mais recentemente, Jaqueline de Jesus e Ester Sabino, que lideraram e sequenciaram o genoma do novo coronavírus. E esses são apenas alguns dos muitos exemplos de importantes mulheres que fizeram com que a ciência chegasse ao que conhecemos hoje.

Por tudo isso, trouxemos a doutora Débora Ferreira Barreto Vieira, pesquisadora em Saúde Pública na Fundação Oswaldo Cruz, especialista em Virologia e doutora em Biologia Celular e Molecular, para responder às perguntas de alguns dos alunos da Rede de Educação Missionárias Servas do Espírito Santo. Ela fala sobre sua carreira na ciência e a respeito de nosso cenário atual de saúde.

Ao longo de sua caminhada até se tornar uma cientista, percebeu a presença do machismo em algum momento?
Não! No decorrer de minha formação, as relações com os colegas foram sempre muito respeitosas.

Dentro do cenário que estamos vivendo, você acha que o Brasil é capaz de dar conta de uma campanha de vacinação? Como você vê nosso futuro em relação à produção de vacinas?
Sim! Temos um grande trunfo chamado SUS (Sistema Único de Saúde), que é modelo para todo o mundo e, dentro deste contexto, o PNI (Plano Nacional de Imunização), que mostra competência em nosso dia a dia, a exemplo das campanhas de vacinação para a poliomielite, sarampo e para tantos outros agravos. Estou bastante otimista! Temos no Brasil duas grandes referências em produção não só de vacinas como de fármacos, que é o Instituto Butantã (São Paulo) e a Fundação Oswaldo Cruz (Biomanguinhos/Rio de Janeiro). Obviamente que, no cenário atual, em que todo o mundo conflui para um só ponto, não estamos no “time” que gostaríamos. Com a transferência de tecnologia da vacina de Oxford para a Fiocruz e o IFA (ingrediente farmacêutico ativo) chegando dentro do cronograma preestabelecido, acredito que teremos um cenário mais positivo no segundo semestre deste ano.

Em seu local de trabalho, você observa uma quantidade significativa de mulheres atuando?
Sim! Temos muitas meninas e mulheres atuando no Campus da Fiocruz. Dos 71 laboratórios do Instituto Oswaldo Cruz, 45 são liderados por mulheres. Alguns desses laboratórios são de referência, a citar o Laboratório de Vírus Respiratórios e do Sarampo, que foi nomeado, em 2020, laboratório de referência da Organização Mundial da Saúde para a covid-19 nas Américas, que é chefiado, com maestria, pela doutora Marilda Siqueira.

Em sua opinião, o que fez o movimento antivacina crescer nos últimos tempos?
A desinformação, as fake news, as falas descabidas e a postura negacionista de chefes de Estado. Precisamos que grandes referências estejam à frente dos veículos de comunicação, informando à população. Precisamos de um diálogo consonante entre a ciência e a sociedade.

Sendo cientista, acredita que a política interferiu diretamente na situação do Brasil?
Sim! Não foram raras as cenas e falas negacionistas que presenciamos, vindas de importantes formadores de opinião. Corroboro a fala da cientista política Sara Wallace Goodman, da Universidade da Califórnia, quando diz “Em circunstâncias de alta desinformação e falta de informação, as pessoas observam os exemplos. Só podemos ser racionais se nossos líderes forem racionais”. Nós nos vimos numa disputa política pela primazia na aquisição dos imunizantes. Lamentável!

Sua credibilidade já foi posta em dúvida por ser mulher?
Não!

Em algum momento, você se encontrou em um dilema entre ser mãe ou investir na carreira?
Não! Tento equilibrar, da melhor maneira possível, essas duas delicadas esferas (maternidade e carreira). Quando as minhas filhas nasceram (sou mãe de trigêmeas), eu já tinha finalizado o doutorado e já era do quadro de servidores da Fundação Oswaldo Cruz.

Qual foi a reação das pessoas quando você disse que queria ser cientista?
Costumo dizer que eu sou reflexo da garra de minha mãe, Dona Maria José. Venho de uma realidade bastante humilde. Minha mãe só teve acesso a uma “cadeira escolar” depois dos 45 anos de idade. A frase que sempre reverberava nos quatro cantos da casa era: estudem para que a realidade de vocês (há mais uma cientista na família) seja diferente da minha. Imaginem a reação dessa mãe, pai, amigos! Mesmo sem entender direito todo o caminho que eu teria de trilhar, sempre tive muito apoio dos meus pais, que hoje são um orgulho só.

Como você descobriu qual área da ciência queria estudar?
Na verdade, não descobri a Virologia; fui, sim, tragada por ela. Em conversa com um professor do curso de Ciências Biológicas, relatei a minha frustração pelo fato de serem poucas as aulas práticas. Àquela altura, eu não me sentia preparada para o mercado de trabalho. E foi daí que tudo começou. Esse professor, que hoje é meu colega de profissão, apresentou-me ao Laboratório de Ultraestrutura Viral do Instituto Oswaldo Cruz, Fundação Oswaldo Cruz. Nesse laboratório, construí toda a minha trajetória científica, tive a oportunidade de ser orientada por grandes referências da área de Virologia e Ultraestrutura Viral, como a doutora Ortrud Monika Barth e o doutor Hermann Schatzmayr. Hoje tenho muito orgulho de liderar a equipe deste laboratório que me acolheu e que me deu a oportunidade de realizar todos os meus sonhos profissionais.

Ao longo de toda a sua carreira profissional, vivenciar esse caos causado pela covid-19 foi seu maior desafio como cientista?
Sem dúvida, este é o momento mais desafiador. Até então, os maiores desafios por mim vivenciados profissionalmente estão relacionados a estudos de modelos animais para testes de fármacos e candidatas a vacina contra os vírus dengue e, mais recentemente, para o vírus zika.

Em algum momento, você observa que valores morais são colocados acima de conhecimentos científicos?
Sim, infelizmente! Trabalho numa instituição que tem um cuidado extremo com todos os protocolos, quer sejam relacionados a pesquisas com animais ou com amostras humanas. Todos os procedimentos são submetidos a comissões de ética específicas que são extremamente rigorosas em suas análises. Assim como a doutora Débora, não são todas as mulheres que vivenciam e, ou, percebem situações de machismo em seus locais ou áreas de trabalho. Porém não podemos negar que isso ainda ocorre em muitos lugares. O machismo, como comportamento presente em nossa estrutura social como um todo, também se encontra presente na ciência. É verdade que hoje já avançamos em relação a esse tópico, mas ainda temos um longo caminho a percorrer. Por isso existe um grande número de pesquisadoras empenhadas em estimular meninas e mulheres a entrarem no campo da ciência e também em denunciar quando não há o respeito e a igualdade necessária dentro da área. Perfis como o da Rede Kunhã Asé de Mulheres na Ciência , que formam uma rede de apoio, colaboração e empoderamento de mulheres em diversas áreas da ciência, buscam atuar em diferentes frentes, como o incentivo e recrutamento de meninas na ciência, o apoio à inserção e permanência de mulheres cientistas na pesquisa científica e, ainda, a promoção da equidade de gênero na ciência. Segundo descrição da doutora em Ecologia e Evolução, Luísa Maria Diele-Viegas, idealizadora do perfil @minhaamigacientista , com forte papel de divulgação científica nas redes sociais, e integrante da rede Kunhã Asé, todas as ações da rede são embasadas pelo conceito de interseccionalidade, visando ao combate à opressão de raça/cor e etnia, classe, sexualidade, identidade de gênero e ao capacitismo. O nome da rede, que significa “mulher de poder” ou “mulher poderosa”, visa a refletir, mais uma vez, a preocupação com interseccionalidade e com a representatividade não apenas da mulher, mas de todas as mulheres na ciência. Essa rede é responsável por uma série de publicações que trazem essa temática e, em fevereiro deste ano, publicaram uma carta com o título Why we shouldn’t blame women for gender disparity in academia: perspectives of women in Zoology (“Por que não devemos culpar as mulheres pela disparidade de gênero na academia: perspectivas das mulheres na Zoologia”), em resposta a um artigo que conclui que as mentoras prejudicam o sucesso de suas protegidas e a qualidade de seu impacto. A carta destaca possíveis falhas metodológicas e discute questões relativas às mulheres na ciência, trazendo uma perspectiva das mulheres na Zoologia e discutindo como as políticas de diversidade atuais estão mudando positivamente nosso campo. Portanto, neste mês de março, quando a valorização da mulher se coloca em evidência, deixamos o nosso muito obrigado a todas as mulheres que já trilharam caminhos tão promissores e que servem de exemplos para todas as que virão, e reforçamos que lugar de mulher é na ciência ou em qualquer outro que ela queira estar.

Doutora Débora Ferreira Barreto Vieira
Pesquisadora titular em Saúde Pública, chefe do Laboratório de Morfologia Viral do Instituto Oswaldo Cruz, Fundação Oswaldo Cruz. Graduada em Ciências Biológicas, especialista em Virologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), mestra e doutora em Biologia Celular e Molecular pelo Instituto Oswaldo Cruz, Fundação Oswaldo Cruz.

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