Começo este texto citando a fala de minha conterrânea ilustríssima, Adélia Prado, hoje reconhecida como uma das maiores poetas (ela acha melhor que “poetisa”) de nossa língua: “Olha, gente, têm algumas celebrações em que a gente sai da igreja com vontade de procurar um lugar para rezar”.
Já faz tempo que comprovo esse desarranjo denunciado pela escritora. Algumas vezes, tive de sair da igreja e ir para o estacionamento ou para a praça para poder orar. Em penitência, reconheço: eu mesmo já me peguei tagarelando nos espaços sagrados, quase sempre com assuntos pouco santos, confesso. “Mea culpa, mea maxima culpa!”
A liturgia também se tornou vítima da barulheira. Os momentos de “silêncio sagrado”, sobretudo antes da celebração, no Ato Penitencial, na Liturgia da Palavra e após a comunhão, são ignorados por muitos. Sem contar o som alto, desregulado, emanando cânticos de gosto duvidoso. Uma pena!
Salvo nobilíssimas exceções, nossos lugares de prece, nossas ruas e até nossas casas têm ecoado (quase literalmente) o estridente medo que a sociedade tem de mergulhar no silêncio. Por que será? Um esclarecimento: aqui sempre me refiro ao silêncio do “fermento na massa”, aquele que nos engrandece; longe de nós o “cala a boca” opressor, castrador, omisso, causa e consequência de morte.
A Quaresma é muito oportuna para nossas revisões de vida. Para mim, é um período mais significativo do que a virada de ano, quando somos sufocados pelas correrias das ruidosas “festas” e insistimos em fazer propósitos cujas realizações nem chegam ao carnaval. Enfim, nesta jornada rumo à Páscoa, que tal revalorizar o silêncio, convidá-lo para (re)entrar na casa de nosso coração? É bom lembrar: saber calar-se com sabedoria ainda é ser solidário com as vozes silenciadas de nosso mundo.
A seguir, darei algumas propostas para a prática do silêncio. Antes, contudo, retomo Adélia Prado: “A palavra foi inventada para ser calada. É só depois que se cala que a gente ouve. A beleza de uma celebração e de qualquer coisa, a beleza da arte, é puro silêncio e pura audição”. Portanto, não tenhamos medo do silêncio!
Silêncio digital
Com suas virtudes e vícios, o mundo digital e suas redes sociais simbolizam nosso tempo, mas são também um lugar para o silêncio. Não preciso curtir tudo, comentar tudo, ler tudo, saber de todas as notícias ou análises, ver todos os famigerados videozinhos de bichinhos ou de “lacradores” sacros ou profanos. Com consciência, experimente se calar no mundo digital. Como bônus imediato, acredite, haverá tempo para o que importa.
Em casa
Comece por alguns minutos e vá aumentando o tempo ao longo das semanas. Nesse momento, apenas preste atenção, seja cozinhando, seja lavando a louça ou a roupa, seja orando. Observe a dinâmica do corpo enquanto respira. Obviamente, deve-se afastar o que nos distrai; desligar o rádio, a tevê, silenciar o telefone. Vale a pena!
Nas refeições
Aqui temos muito a aprender com nossos irmãos e irmãs monges. Que tal convidarmos o próprio Senhor para estar conosco em uma hora tão sagrada? Comer devagar, atentar-se ao “pão nosso de cada dia”, bendizer a Deus por tão grande dádiva é um grande gesto de agradecimento. No mínimo, isso fará muito bem para a saúde.
No trânsito
Faça a experiência de reservar alguns dias da semana para apreciar o caminho ou prestar atenção somente ao tráfego. Guarde os fones de ouvido ou desligue o rádio do carro. Pode ser um instante privilegiado de estar acompanhados de nós mesmos ou de ouvir as vozes de nosso interior. Se, por acaso, você se pegar cantarolando, não se assuste! Sim, é claro, dá até para ouvir ruídos estranhos do veículo!
Na oração
Segundo Santo Inácio de Loiola, o preparar-se para a oração já faz parte dela. Faça a experiência de colocar-se na presença de Deus, não como uma formalidade, mas como numa visita a alguém muitíssimo querido, que nos aguarda para uma prosa, para nos ouvir, nos confortar e nos corrigir. Isso se dá muito bem no silêncio. Na prece, é preciso haver escuta. Tenho comigo que Deus é muito educado. Se falamos o tempo todo, elegante como Ele é, apenas nos ouve. Devemos dar-lhe a palavra. Isso também vale para nossa oração comunitária.
Exercício não apenas físico
Tal como no trânsito, também é bom fazer a experiência de reservar um ou mais dias na semana para a prática de exercícios físicos no silêncio. Talvez haja “ruídos” dentro de nós, sinalizando que não somente o corpo, mas outras dimensões de nossa integridade humana precisam de cuidado.
No diálogo
A arte do diálogo começa pela escuta. Muitas vezes, nossos interlocutores não querem muito saber nossa opinião, mas desejam humildemente nossos ouvidos atentos. Não devemos ficar ofendidos com isso. Aliás, apenas devemos opinar se temos o mínimo de conhecimento sobre o assunto (atitude meio rara hoje, diga-se).
Experiências fortes
Uma vez por ano ou em outros períodos que achar melhor, busque afastar-se da correria e faça uma “degustação” mais prolongada de silêncio, de escuta. É uma oportunidade valiosa de sentar-se aos pés do Mestre (cf. Lucas 10,38-42). O próprio calendário litúrgico nos oferece excelentes ocasiões, como a Quarta-Feira de Cinzas e a própria Quaresma, a Sexta-Feira da Paixão, o Sábado Santo (não é Sábado de Aleluia!) e o Tempo do Advento, só para citar algumas. Em resumo, planeje um tempo para estar na companhia do silêncio. Prepare-se para experiências importantes!
Alessandro Faleiro Marques
Diácono permanente na Arquidiocese de Belo Horizonte, professor, editor de textos para as irmãs missionárias servas do Espírito Santo, membro da Equipe de Espiritualidade da Província Brasil Norte das SSpS.