Narcisismo em tempo de Quaresma

Refletindo sobre a proposta da Igreja Católica para a Quaresma, a de viver um tempo de sobriedade por meio da oração, do silêncio e da abstinência, e olhando a dificuldade das cidades, inclusive onde moro (que tem 14 mil habitantes somente), indiferente diante desta proposta; olhando perplexo (sempre) aos apelos da mídia em tempo de carnaval, pré-carnaval e pós-carnaval, achei oportuno refletir sobre este tema da Psicologia: o narcisismo. Esse conceito foi mencionado por Freud em 1910.

A Psicologia define o narcisismo quanto às duas fases: conforme o desenvolvimento saudável e o patológico. O desenvolvimento saudável é descrito como narcisismo primário. Este é identificado nos primeiros meses do desenvolvimento do bebê, no relacionamento com os pais, especialmente com a mãe. É elemento constitutivo do amor-próprio e da autoestima; portanto, destinado à autopreservação do sujeito e formação dos laços sociais. Já o narcisismo patológico, é encontrado no estudo das neuroses, perversão e psicose (Araújo, 2010). Assim, o que vemos na mídia, nos tempos atuais, é a manifestação de um narcisismo patológico, marcado pela necessidade de ser visto, notado e curtido. Nas redes sociais, cresce o número de digital influencers, cujo pesadelo é a possibilidade de perder seguidores ou serem cancelados. No carnaval, há uma neurose em relação ao corpo que vai ser exibido nas ruas, praças, avenidas e programas de tevê, tanto em pequenas cidades como em metrópoles.

Gastam-se uma fortuna para realizar cirurgias plásticas, para mudar o formato do corpo. Absurdamente, faz-se harmonização facial em adolescentes de 15 anos, que ainda nem têm o corpo definido pela natureza. Num certo programa de tevê, um jovem brasileiro, que naturalmente corresponde ao padrão de beleza europeu, gastou mais de 100 mil reais para ficar parecido com um boneco chamado Ken. Outra “celebridade” aplicou substâncias gelatinosas nos glúteos para ficar famosa por ter os maiores glúteos do mundo. Outras não aguentam mais o peso dos seios aumentados, têm dores de coluna. Todos estão cientes do risco de morte que correm, mas, mesmo assim, atribuem a Deus a proteção que esperam. Nem percebem que estão brincando de serem Deus, assim como a Eva e o Adão da Bíblia.

Os narcisistas patológicos estão entre nós. Eles estão na sociedade, na política, na religião, na vida consagrada, na vida sacerdotal, no trabalho e dentro de casa, na família. Uma ou outra destas características podem servir para identificá-los: insegurança, sentimento de superioridade, falta de empatia, necessidade constante de admiração e atenção, sensação de ser o centro de tudo e de todos, notável superficialidade, manipulação, grandiosidade, papel de vítima, agressividade, etc.

O período da Quaresma é um tempo que inevitavelmente nos faz refletir sobre esse conceito. Para os cristãos católicos, este é um momento de nos converter, nos fortalecer espiritualmente contra essa patologia que chamamos de uma das tentações de Jesus no deserto: a tentação do ser. Para os nãos católicos ou não cristãos, este momento pode ser chamado de vacina contra esse mal, ou mesmo como antídoto. O fato é que a pedagogia que a Igreja usa, celebrar este tempo litúrgico logo após o carnaval, ajuda-nos a refletir sobre o sentido de nossa vida aqui neste mundo.

Para se fortalecer contra a tentação que, na Bíblia, venceu o primeiro homem e a primeira mulher, a tentação de dispensar Deus, sendo igual a ele ou pondo-o a serviço da humanidade, Jesus se fortalece pelo esvaziamento, pela oração e pela penitência. É oportuno destacar também o fato de a tentação ter se manifestado justamente no momento em que Jesus sentia fome. Podemos associar esse momento, hoje em dia, ao vazio existencial, à fome de ser amado, de encontrar sentido na vida, que leva muitas pessoas a tentar preenchê-lo com o exibicionismo ou egocentrismo, com elementos externos e até mesmo pondo Deus a seu serviço. Isso nos leva a outro conceito filosófico, o hedonismo, que merece um artigo à parte.

Como lidar com um narcisista neurótico? A primeira sugestão é convencê-lo a procurar ajuda terapêutica para ser diagnosticado quanto ao grau de seu narcisismo. Embora se acredite não haver cura para essa patologia, ela pode ser amenizada, buscando-se o autocontrole das ações para evitar danos a terceiros. Quando se trata de amigos, namorados ou namoradas, colegas de trabalho ou de estudo, o afastamento pode ser uma maneira de se autopreservar e preservar de danos à sua autoestima. No entanto, quando se trata de parentes, como pai, mãe, filhos ou irmãos, é preciso buscar até mesmo a ajuda terapêutica para se conscientizar de que o problema não está com você, como o próprio narcisista sugerirá quando confrontado. Para os religiosos, busque na espiritualidade, especialmente no estilo de vida de Jesus Cristo, o “antídoto” para esse mal, essa tentação.

Referência
Araújo, M. G. (2010). Considerações sobre o narcisismo. Estudos Psicanalíticos, 34, 79-82.

Pe. Aparecido Luiz de Souza, SVD
Psicólogo.

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