Nativos digitais: se as crianças não passarem tempo com os pais, teremos consequências?

O termo “nativos digitais” foi criado por Marc Prensky, em seu artigo Digital natives, digital immigrants, de 2001, publicado com a intenção de se referir à geração que nasce e cresce imersa na tecnologia, e a algumas das implicações dessa mudança no processo de ensino-aprendizagem. De tal forma, podemos observar um marco de mudança significativa entre gerações que nos coloca diante de uma nova realidade: as atuais novas gerações e próximas estão conectadas, desde a infância, no digital.

A problemática surge quando refletimos, de forma crítica, sobre a função que se direciona hoje aos eletrônicos em contato com a criança, cada vez mais cedo e sem limite de uso.

Estamos, nos últimos anos, recebendo nos consultórios as primeiras gerações de bebês e pequenas crianças que, desde o nascimento, convivem com a existência desses gadgets eletrônicos e que recolhem as consequências disso não só diretamente, na medida em que eles passam a ser oferecidos no lugar dos brinquedos (não à toa, têm sido fabricados menos brinquedos e mais jogos eletrônicos), mas também indiretamente, na medida em que convivem com adultos que não têm mais tempo, porque os eletrônicos bugaram, desconfiguraram a borda entre o espaço de lazer e de trabalho, e que não têm mais lugar, afinal se vive olhando para janelas virtuais, de corpo presente, mas psiquicamente ausente (BAPTISTA; JERUSALINSKY, 2017, p. 35).

Quando pensamos no surgimento de um termo utilizado para definir as gerações conectadas e começamos a repensar nossa forma de atuação para mediar um acesso que se apresenta quase intrínseco às crianças, faz-se válido destacar alguns pontos de consequência acerca dos limites de uso dessas ferramentas digitais, de uma conexão wi-fi que não pode substituir a conexão humana, principalmente em tempos fundamentais como do desenvolvimento e estimulação inicial de uma criança, considerando que, nos anos iniciais, ocorre a instauração da linguagem bem como seus efeitos, mediados por um adulto que efetua essa inscrição na criança.

Este é o problema: os aparelhos emitem sequências sonoras, mas não conversam […] eles oferecem fragmentariamente uma linguagem, mas não sustentam sua função. Emitir sequências sonoras é bem diferente do que dar lugar a que o sujeito possa se representar na linguagem (BAPTISTA; JERUSALINSKY, 2017, p. 41)

Podemos visualizar, entre vários aspectos, algumas consequências desse afastamento dos responsáveis pela criança, que acabam, muitas vezes, por colocar em seu lugar aparelhos eletrônicos para obter algum tempo de descanso, por exemplo (nem sempre cientes dos malefícios) como o prejuízo na linguagem e dos estímulos, conforme nos apontam Baptista e Jerusalinsky (2017, p. 42): “Não são poucos os bebês e pequenas crianças de um ano e meio a três anos que chegam ao consultório […] que não respondem quando chamados”.

De tal forma, essas crianças respondem a sequências sonoras emitidas por serviços de entretenimento digital, mas não localizam o olhar do outro nem se localizam em um espaço, apenas buscando as telas e passando o dedo por elas (BAPTISTA; JERUSALINSKY, 2017). Emitir frequências sonoras, observar entonação da voz e a musicalidade desta se dá pela chamada prosódia, que seria, nesse caso, a comunicação entre bebê e quem realiza a função materna, “o modo como cada um se apropria da língua materna ao aprender a falar” (MAURANO, 2015, p. 92). Sendo as telas uma crescente inserção da infância, já observamos crianças como espectadoras do que os brinquedos fazem, e não mais como protagonistas de criar e imaginar, o que deve ser considerado quanto aos prejuízos que isso pode causar em um tempo em que as crianças ainda estão constituindo-se em seu desenvolvimento corporal e psíquico

Podemos, assim, caminhar para a conclusão e seguir ampliando as reflexões de que vários fatores nos apontam sobre ser fundamental o tempo de qualidade (e, com esse termo, queremos dizer adultos presentes de corpo e mente, brincando, interagindo e não apenas sentados ao lado dos filhos, dividindo telas e rolando um feed) que os pais/responsáveis passem com essa criança. “Jogar é muito diferente de brincar, atividade constitutiva que permite e favorece a elaboração psíquica, estimula a imaginação e permite criar recursos anímicos para lidar com as angústias e os conflitos próprios da vida” (GUELLER, 2017, p. 66).

Vale destacar que um bebê chega ao mundo já nomeado por um outro que escolhe como se chamará ao longo da vida, que foi desejada como filho, filha e que ocupará um lugar nessa família, necessitará, por mais algum tempo, de várias nomeações vindas desse outro a que se refere como pai e mãe, visto que é quem faz essa função inicial nos primeiros anos de vida com a criança, que nomeará quando sente fome, frio, sono… Isso é tão importante quanto o tempo de nomear e colocar significados, o tempo que a criança aprenderá nomear e dizer de si, imaginar e criar a partir da subjetivação da vivência dos anos iniciais e os vínculos que estabeleceu.

Dessa forma, haverá o tempo de observar esse bebê tornando-se criança, adolescente e um adulto, atravessado pelas experiências iniciais de sua família e dos demais afetos de sua vida. Por fim, podemos então finalizar este pequeno artigo com o mesmo título que nos convocou a escrevê-lo: se os pais não passarem tempo com as crianças, quais consequências poderemos ter?

Referências

BAPTISTA, Angela; JERUSALINSKY, Julieta. Intoxicações eletrônicas: o sujeito na era das relações virtuais. Salvador: Ágalma, 2017.

GUELLER, Adela. Droga de celular! Reflexões psicanalíticas sobre o uso de eletrônicos. In: BAPTISTA, Angela, JERUSALINSKY, Julieta. Intoxicações eletrônicas: o sujeito na era das relações virtuais. Salvador: Ágalma, 2017. p. 63-75.

MAURANO, Denise. A perspectiva “musicante” da voz na Psicanálise ou notas sobre o ditirambo psicanalítico. In: DIAS, M. M. (Org.). A voz na experiência psicanalítica: III Jornada Seminário Fundamentos da clínica do psicanalista pelas psicoses. São Paulo: Zagodoni, 2015. p. 87-106.

PRENSKY, Marc. Digital natives, digital immigrants. On the Horizon, v. 9, n. 5, out. 2001. Disponível em: https://www.marcprensky.com/writing/Prensky%20-%20Digital%20Natives,%20Digital%20Immigrants%20-%20Part1.pdf. Acesso em: 10 jun. 2023.

Amanda Monteiro Faedo
Psicóloga educacional no Colégio Santa Maria de Cascavel-PR, psicóloga clínica (CRP 08/28509), especialista em Psicanálise Clínica – Freud a Lacan pela PUCPR, Campus Toledo-PR.

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